quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Euryalo Cannabrava





NATUREZA E HISTÓRIA





O Sr. Sérgio Buarque de Holanda, crítico literário forrado de cultura filosófica, em uma de suas crônicas publicadas no Diário Carioca fez alguns comentários sobre duas comunicações que tive a honra de apresentar ao Congresso Brasileiro de Filosofia. As observações do excelente critico paulista ferem em cheio alguns pontos fundamentais que se relacionam com as deficiências e irremediáveis desvios da atividade especulativa entre nós.

É inegável que os trabalhos reunidos agora nos “Anais” do referido Congresso estão longe de confirmar a existência, no Brasil, de vocações filosóficas de primeira ordem. A maioria das comunicações se caracteriza por singular abstinência em matéria de idéias: os congressistas em geral preferiram debater as questões históricas da filosofia a enfrentar corajosamente os seus problemas. Diversos trabalhos não apresentam qualquer vestígio de originalidade, limitando-se os seus autores a catalogar citações sobre os assuntos mais variados, sem preocupação alguma de coerência e unidade no curso da exposição.

Nada mais lamentável do que essa incapacidade, tão generalizada entre nós, de distinguir o que é simples memorização erudita daquilo que revela penetração crítica e capacidade de análise. Há, sem dúvida, certa resistência ao esforço crítico, que se manifesta através da adesão incondicional aos sistemas especulativos e da recusa obstinada em rever os fundamentos de nossas convicções mais profundas.
Discutindo, há alguns anos, com um amigo que se mostrava exageradamente receptivo aos ensinamentos da filosofia cristã, tive oportunidade de lhe fazer várias perguntas indiscretas. Entre elas, lembro-me de algumas que o irritaram bastante: “Se você acredita que Jacques Maritain é um gênio, qual o adjetivo que reservará para São Tomás, em cuja obra o escritor francês foi buscar todas as suas idéias? E se você teima em proclamar que São Tomás é um supergênio, que qualificativo aplicará a Aristóteles, inspirador de pelo menos dois terços da filosofia tomista?”
É claro que essas perguntas ficaram até agora sem resposta. Tudo isso indica, entretanto, que o entusiasmo fácil por idéias alheias nem sempre é acompanhado pela tentativa de examinar criticamente as verdadeiras razões de nossa admiração. E se alguém nos força a apresentar evidências, que justifiquem a aceitação de certos sistemas ou credos filosóficos, torna-se difícil dissimular a gratuidade de nossa adesão.
Foi assim que se difundiu, nos últimos tempos, entre os círculos filosóficos da América Latina, fascinados pelo sortilégio do pensamento germânico, a ingênua convicção de que existem fundamentos sérios para a distinção entre as ciências naturais e as ciências histórico-culturais. Os adeptos (quase sempre sectários e intransigentes) dessa famosa dicotomia do grupo das ciências julgam-se inteiramente dispensados de qualquer espécie de justificação. Eles acreditam que a bifurcação das disciplinas em naturais e histórico-culturais deve ser aceita sem maior exame.
O prestígio do nome de Wilhelm Dilthey contribuiu muito para a generalização, na América Latina, da absurda convicção de que existe incompatibilidade, ou diferença profunda, entre o conhecimento da natureza e o conhecimento da história. O filósofo Ortega y Gasset encarregou-se da tarefa de cavar um abismo entre a realidade histórica e a realidade natural. Foi ele quem afirmou dogmaticamente que o homem não é natureza e sim história.

Nenhum desses pensadores, porém, jamais se lembrou de demonstrar que a classificação bipartida das ciências encontra apoio em critérios racionais e lógicos. A disciplina competente para estabelecer normas de classificação é a lógica formal. Pergunta-se, portanto, se Dilthey, ou Ortega y Gasset, seu discípulo moderno, demonstrou com o necessário rigor que as ciências históricos-sociais satisfazem os requisitos lógicos de objetividade, consistência e ordenação sistemática das disciplinas denominadas positivas.

O filósofo alemão Dilthey nunca se preocupou em provar que existe uma ciência histórica, por exemplo, completamente distinta das ciências naturais: para isso seria indispensável que ele se referisse explicitamente aos característicos e propriedades lógico-formais que distinguem o conhecimento histórico do conhecimento natural. Cabia-lhe, ainda, a tarefa complementar de justificação da lei histórica, mencionando as razões ponderáveis que o levaram a atribuir a esta última o mesmo status lógico da lei natural. A lei natural se verifica, quando se torna possível estabelecer relações quantitativas de proporcionalidade constante entre duas ou mais variáveis. O mesmo por acaso se poderá dizer das supostas leis históricas?

O recurso à filosofia dos valores e critérios puramente especulativos jamais poderá suprir a ausência de princípios lógicos, que estabeleçam normas para a classificação bipartida das ciências. Mas a lógica formal não somente separa e divide as disciplinas, como também estatui regras para a redução de uma ciência a outra ciência.
Essa redução, como observa Ernest Nagel em artigo recente (1), se verifica somente quando os termos que ocorrem nos enunciados da disciplina secundária (biologia por exemplo) podem ser explicitamente definidos com o auxílio do vocabulário especifico das disciplinas primárias (física e química). Essa seria a técnica a se aplicar ao domínio das ciências histórico-sociais (disciplinas secundárias) com o objetivo de reduzi-las ao grupo previamente formalizado das ciências naturais (disciplinas primárias).
O sr. Buarque de Holanda manifesta a esse propósito sérias dúvidas de que tal tarefa possa ser levada a cabo no domínio das ciências históricas. As suas observações se aplicam mais rigorosamente às tentativas ingênuas de matematização da história, psicologia ou sociologia. O crítico paulista discute esse problema animado de um sadio pessimismo, pois é evidente que nada indica, ainda remotamente, qualquer possibilidade de se executar esse ambicioso projeto.
Seria ingênuo, por outro lado, acreditar que a redução da história à economia, ou a outras ciências, possa verificar-se nas mesmas condições em que amplos capítulos da química foram reduzidos à estrutura da física, mediante a tradução dos termos daquela disciplina na linguagem da teoria atômica. Ora, tanto a formalização da história, como a sua equiparação a outra disciplina básica seriam, diante dos recursos atuais da lógica formal, comparáveis ao trabalho de unificação das artes ou de sua transformação em um único modelo...
Pois é precisamente a história - fator comum a todas às disciplinas - que permanecerá provavelmente irredutível a qualquer tentativa de matematização. O domínio histórico é o campo em que se movimentam as forças irracionais, os interêsses e as tendências afetivas, os valores misteriosos de variáveis desconhecidas e para-metros ocultos. Nesse setor parece sempre pouco fecunda a técnica que consiste em formular postulados básicos e deduzir dessas proposições primitivas uma série de conseqüências relevantes.
O que parece mais provável é que a formalização da economia e sociologia se reflita indiretamente na esfera do conhecimento histórico. O trabalho de Lazarsfeld e Lundberg em sociologia indica diretrizes que poderão orientar os futuros pesquisadores. A extensão do método científico à história obedecerá, portanto, a princípios estratégicos diferentes daqueles que se fizeram valer no domínio dos fatos naturais.
A história dificilmente adquirirá o “status” lógico-formal de uma disciplina positiva, mediante recurso direto às leis de derivabilidade sintáxica e aos processos modernos de matematização. É possível, porém, que o progresso de outras ciências, muito próximas da história, no sentido de utilização crescente da técnica de formalização, contribua para eliminar parcialmente os efeitos desastrosos do diletantismo literário e filosófico sobre uma disciplina que não se caracteriza pelo rigor sistemático de suas construções.
(1) Mechanistic Explanation and Organismic Biology - Philosophy and Phenomenological Research -- March, 1951.
[texto de Ensaios filosóficos. INL, Rio de Janeiro, 1957.]



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NEJAR E SUAS ORDENAÇÕES

Em as Ordenações*, Carlos Nejar atinge tal depuração da
linguagem, através de versos rasantes, de grupos de força, de
estruturas sintagmáticas, que parece até nos por era contato iii
terno com objetos e situações concretas. Nejar despojou a linguagem
poética de ornatos e atavios desnecessários ou supérfluos.
Esse despojamento obedece a uma tecnica de decisão, que
se torna no poeta cada vez mais complexa, para obter resultados
cada vez mais simples e diretos. A estratégia de decisão
nejariana consiste em elaborar um modelo de aquisiçao das palavras,
mais atento às suas interações do que aos seus processos
de semântica interna. 0 poeta dispõe de um sistema de preferências,
complementado por criterios de seleção.
Os seus critérios seletivos dependem da busca infatigável
daquilo que Da Vinci denominou "ostinato rigore". 0 "ostinato
rigore" em Nejar acumplicia-se com a fuga obstinada ao homogéneo
e ao uniforme na construção das palavras no verso. 0 poema
nejariano fica assim mergulhado, em cheio, naquele espaço estético
em que a disciplina da linguagem se associa ao policiamento
interno dos impulsos e das emoçoes. 0 ideal nejariano pji
OBS -* Ordenações (I»H), Edições Galaad, 1969; Ordenações
(I,II,III,IV,V), Editora Globo, P. Alegre, 1971.
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rece ser o da quietude do apaziguamento interior. A sua arte
permanece classica quanto aos objetivos, embora moderna quanto
aos meios e recursos. Se houve crises e tormentas em seu itine
rario lírico, parece ao leitor atento que tais impedimentos fo
ram removidos por obra e graça das Ordenações.
0 poeta, através delas, determina, dispõe, prepara resgates
, f e i torias , andanças, posses, contratos, devassas. A sua ex
periencia básica como promotor publico no Rio Grande do Sul,
diversifica-se em vivencias alternadas com manuseio de processos,
documentos, leis e sentenças. A tarimba jurídica afinoulhe
a sensibilidade para as falencias, os órfãos, os ausentes,
os varejos, os balanços, os testamentos, os filhos naturais,
os deserdados. A consciência da engrenagem social, das custas,
das delongas, dos tramites legais refinou-lhe o sesõrio para
o humano na desidia, no abandono, no esquecimento. 0 calor da
simpatia humana em Nejar, que ja tinha aquecido os versos de
0 Campeador e o Vento, volta agora, em Ordenações, naquela retorica
sutil e refinada na distensao rítmica, no contacto -com
a frialdade da morte, na entrega de si mesmo, no resgate da
culpa, a purificaçao da inocencia. Nejar fluidifica os limites
entre a imanencia dos hábitos e o impulso para a transcendencia
no infinito. A sua faina é destruir a crosta espessa do
corpo para sentir, ao vivo, o que esta por dentro. E o que per
manece nesse ideario quase místico que permeia os seus poemas,
nessa evasao do cotidiano para atingir as camadas superiores
da abstraçao e do pensamento reflexivo, se condensa na experiência
poética, como interpretação da natureza e do homem.
Há, sem dúvida, força e penetração metafísica nestes poemas,
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cuja linguagem resvala no terreno áspero do prosaico para alcançar
os estratos rarefeitos da expressividade lírica.
0 que caracteriza, porem, toda a poética nejariana, desde
o Livro do Tempo (1965), o Campeador e o Vento (1966)até as
atuais Ordenações é a procura insistente do "ostinato rigore"
nas interações vocabulares, na expansao da forma comandada pe
lo ritmo. 0 rigor, na linguagem poética, obtém-se pela mobili_
zação estratégica de recursos do contraponto verbal. Estes recursos,
reforçados pela tensão conotativa entre o substrato
das referencias simbólicas e o repertório imagístico na palavra,
integram o vocabulário lírico de indeterminaçao propícia
»
ãs mais variadas interpretações. Essas interpretações, porém,
nao seriam infinitas, ao contrário do que afirma Umberto Eco
a propósito da Obra Aberta.
Em primeiro lugar, o poema como toda obra de arte, e nece¿
sariamente fechado. E o fechamento do espaço poético determina
se pelo seu raio de ação, circunscrito a domínio significativo
que define o campo abrangido pela mobilizaçao lirica de recursos
lingüísticos. Os limites do poema sao as fronteiras da lin
guagem poética. Ultrapassar esses limites seria incidir na 1 i ri
guagem prosaica, trivi al i zand o o que é especifico no ritmo vocabular
do poema, d i stinguindo-o do ritmo sentenciai do romance
ou do conto. As delimitações entre poesia e prosa estao na
dependencia da arquitetônica rítmica que diferencia o verso da
frase. Além disso, há, em ambas, determinações estilísticas di_
versas. 0 estilo do poema,ao contrário do estilo da prosa, adçj
ta um modelo de aquisição da linguagem em que o sentido é submergido
pelo ritmo e pela polifonia do contraponto verbal.
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O rigor na construção rítmica, tanto do verso como da frase,
reduz-se ao movimento exterior da forma e ã sua contração
interna, galvanizada pelo estilo. 0 "tempo" rítmico, na arquitetônica
estilística das sentenças, em um escritor como Proust,
obedece a estrategia de decisão que conjuga a expressão da for
ma com as modulaçoes pelo ritmo sentenciai. A frase, em Proust,
dilata-se através do encaixe de locuçoes incidentes até o ponto
máximo de tensão, proximo do rompimento em unidades fragmeti
tárias. Nesta fase, porém, verifica-se uma especie de reajuste
ou recomposição interior que suscita através de estruturas reversíveis,
a galvanizaçao de expressividade tematica pelo estí
lo. Vejam bem: o efeito da frase, na prosa proustiana, se dilui
através da duração das locuções verbais, das sintagmas interca
ladas no contexto, dos encaixes sucessivos, inseridos a golpes
de martelo, das amp 1 ificaçoes muitas vezes intempestivas, que
se distanciam do início dos períodos como os rios dos mananciais
.
0 oposto se verifica no poema moderno, em que o coeficente
temporal, na arquitetônica do ritmo se contrai bruscamente,por
sacudidelas e tropeços, pelo imprevisto na sequencia dos vocã
bulos, pelas dissonâncias nos acoplamientos verbais, pela surpresa
das afinidades eletivas entre sintagmas e grupos de
força, pela drasticidade das imagens. 0 estilo poético tornou-
se mais sóbrio do que a prosa. 0 arquetipo poético segue
o modelo da concisão, do rompimento de estruturas lógicas
na seqüência das palavras, da aspereza no trato e no manuseio
das combinações léxicas. 0 refinamento ou a sutileza na linguagem
poética ê substituído pela incontinencia, pelo transbordamento,
pela violaçao dos Cânones esteticos. 0 poema moll
derno, como de Nejar, adota fórmulas de comando verbal e discursivo
que desarticula, na estrutura linguistica, os liâmes
entre som e sentido, entre palavra e significado, entre sintaxe
e semântica. Logo, na entrada das Ordenações , o poeta decía
ra :
"Louco ou nao, ébrio sempre, / avarento com as lamúrias,/
prescrevo estas ordenaçoes / para que afixadas sejam" - não
deixando dúvidas sobre as suas intenções de se exprimir
em linguagem irredutível a cânones de inte1igibil idade prosaica.
Ë evidente que o poeta finge ignorar limites e condições
restritivas do mundo real: ele se transpõe, com armas e bagagens,
para um mundo concreto em que a palavra determina, por
si só, a presença efetiva do objeto. Este mundo, cuja necessidade
se sobrepoe ao contingente e ao aleatório, identifica-se,
no plano da criatividade pura, com o permanente e o absoluto
da experiência sensível. 0 poeta sente e vibra através desse
contacto interno dos sentidos com o mundo das cores, das formas,
das tramitações contínuas entre o claro e o escuro, a som
bra e a luz, o consciente e o inconsciente, o inteligível e o
ininte legíve1. Eis por que ele afirma em seguida:
"Nao serei sujeito / i morte e seus acabos."
Nesta profissão de fé, em "Ajuste", Nejar escapa da condição
mortal para prescrever "ordenaçoes" a que se submetem o polimorfo,
o transitório e o variegado. Sobrepondo-se aos "acabos"
da morte, o poeta "Por muita ou pouca razão,/ conforme o enteil
dimento / meu e vosso, ao vivo,/ ao que não sabe a podre,/ ao
leal darei meu preito" - escolhe palavras, não ã esmo ou por
acaso, atento ãs interações vocálicas ou consonantais, nas sí-
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labas rasantes, em busca de rupturas sintáticas ou semánticas.
A ruptura e o objetivo de Nejar na construção do poema, na dis
tribuição dos termos, no inusitado das associações verbais, no
flagrante do inopinado, do imprevisto na forma, no conteúdo,na
arquitetônica estilística. Nejar negaceia, oscila entre polos,
sedimenta, espalha na semeadura e apanha na colheita. E pontiff
i ca :
"É o preço do apreendido/ a custo, a fio, bocal / encaixado no
tempo" - em que, comunicando " o preço do apreendido", informa
que foi "a custo", "a fio". Ou, mais ainda, "bocal" "encaixado
no tempo" como açaimo que refreasse o seu curso implacável.
0 poema conclui com os versos: "Prescrevo estas ordenações/ e
prendo-me, / se por "al" não estiver preso" - pondo a descober
to a sua liberdade, na escolha entre várias alternativas, justamente
daquelas palavras que nao se prendem entre si senão
por elos de expressão e conteúdo puramente material. Ã força
drástica e condensada de "avarento coin as lamúrias", " a morte
e seus acabos", "preço do apreendido", "bocal encaixado no tem
po" , se contrapoe o "louco ou nao, ébrio sempre", o "prescrevo
estas ordenações", o "para que afixadas sejam", o "ao leal darei
meu preito". Esta contraposição, obtida por encaixes do
inusitado com o entretecido da rotina e do cotidiano, empresta
realce e relevo ã forma poética.
Ë o toque do manuseio lírico nas palavras que mantém, entre
si, redações de contraste e de coalisao, a marca sensível
da passagem do transitório no objeto estético para o permanente
na obra-de-arte. Em "Chegamento", o descritivo se acasala
com o descontínuo e a nao - linearidade do entrecho lírico que
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repele o homogeneo para abrir fronteiras a invasao do infinito.
São frinchas abertas na linguagem, mobilizada nos seus ele
mentos quânticos irredutíveis a outros átomos de expressão. Ë
a linguagem comprimida através de condensações sucessivas, em
células rítmicas, em unidades comunicativas de projeção intersilábica
e interconsonantal. Sao sintagmas erigidos em grupos
de força rítmica, imantados interiormente pela carga energetica
das imagens. Esta polarizaçao magnetica de unidades comunicativas,
na linguagem poética, produz efeitos de intensidade
na corrente do dialeto lírico. Daí, em "Chegamento" , o efeito
de cascata das estrofes, em que o ritmo desencadeado se alterna
com efeitos paral e 1 ísti cos de redundancia e de recapitulaçao
:
"Até aqui cheguei,/ vivente, ileso ainda, /apresentando as tri_
lhas/ que só eu caminhei, /amamentadas filhas". / "Ate aqui
cheguei ,/pressuroso, confiante, / mas seco, sem detenças/ no
depois e no antes;/ sou a colina estreita / e o sol posto a
direita." E, logo em seguida, com efeito de ritornelo: "Amigos,
inimigos, / até aqui cheguei,/ por força de eu comigo"
... - em que ressalta o verso "por força de eu comigo", no j£
go interativo do "por força" "de eu" e "comigo", em que o sintagma
lírico se desagrega em átomos de expressão convertidos
em unidades de seqüência rítmica. 0 ritmo nejariano, de fundo
contrapontísti co, se alia ao plástico, de fundo escultural.
Daí a cadência procurada em trilha trovadoresca de paralelismos,
de alternancias, de balanceios no curso breve e interrompido
dos versos. Nejar, como os trovadores de tradiçao ga-
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laico-portuguesa, violenta a linguagem no que ela tem de mais
íntimo, obrigando-a a exibir as suas partes ocultas. Esta afirmaçao
ficaria evidenciada se pudesse exibir, como prova,
os poemas inteiros, e nao apenas algunas de suas partes. Acre
dito,porém, que os fragmentos já citados, dêem ao leitor visão
drástica, embora parcial, da tese em desenvolvimento neste
ensaio. A fim de corroborá-la com outros exemplos, pretendo
transitar das "Considerações sobre a ordem", em que o verso-
estribilho "Deve ser tudo ordenado" - se reitera obsessiva
mente, no plano para 1 e 1ísti co da toada ou da cançao medievalpara
as "Considerações sobre a morte e seus hábitos" . Uestas
últimas, a linguagem sofre violaçoes semânticas de exegese
poética, e impactos sintáticos de arquitetônica estilística.
No poema inicial, a morte aparece como "Visitante insolita":
"A morte e seu consumo. / A morte e seu apuro./ 0 repuxo que
ela traz , o soldo . "
A crítica tradicional, diante destes tres versos, investi^
ga-lhes o "sentido", parafras eando-os em prosa, isto é, deslocando-
os para o plano da sintaxe na construção das frases,e
da semântica na fixaçao do significado. Observem, entretanto,
que o poder referencial do substrato simbólico dos termos sob
exame resulta em simples contrasenso na paráfrase prosaica.
Não se trata de verificar o que o poeta transmite ou informa,
mas sim, o que ele comunica. E o que ele comunica sobre a "Vi_
sitante insólita" através dos versos:
"Desde antanho /' concebemos seu vulto./ Desde antanho / a pro
jetamos / no muro do que somos. / Limpa nos parece:/ arroio,
lebre." - estrat ifica-se em complexo interativo de pura res-
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sonancia interiorizada nas camadas profundas da linguagem. Nejar,
jogral trovadoresco, brinca com as palavras revelando pos
suir domínio completo sobre as relações entre os fatores que
condicionaram a galvanizaçao da expressividade temltica pelo
estilo. Cultivando o "ostinato rigore" no manuseio lírico das
assonâncias e das aliteraçoes, o poeta riograndense desarticula
o idioma lírico, forçando-o a exprimir o incomunicável. £
evidente que se "desde antanho concebemos seu vulto", a morte
passa a ser sombra que nos segue, colada ao nosso corpo. Este
sentimento de fami 1 iaridade com a "visitante insólita" revela-
se, mais uma vez, "desde antanho", nas palavras "a projetamos"
"no muro do que somos".
Seria oportuno, agora, que o leitor se prontificasse para
uma experiencia de natureza psicológica. Verifique, com atençao
concentrada em si mesmo, a possibilidade de inspecionar
sensivelmente o "concebemos seu vulto", o "projetamos no muro
do que somos", o "Limpa nos parece", o "arroio, lebre". A experiência
consiste em explicitar, nas seqüências de palavras,
anteriormente citadas, a interaçao descontínua e regressiva do
"vulto" sobre "seu", e de "seu vulto" sobre "concebemos".
£ claro que a seqüência desses mesmos elementos sintagmãti^
cos, em prosa, com efeitos contínuos, lineares ou irreversíveis
das locuções ou semantemas entre si, contrasta abertamente
com o verso antes citado. A paráfrase prosaica do "Concebemos
seu vulto" seria, entre outras, as seguintes: "Percebemos
o seu vulto" "vimos seu vulto", "contemplamos seu vulto" mas
nunca "Concebemos seu vulto". Mesmo por que o ato de "conceber"
o "vulto da morte impõe a mobilização interior de todas
as nossas experiências, transferidas do domínio sensível
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ou cenestésico para o campo amplo do comportamento intelectual
.
0 "conceber" o "vulto" da morte constitui estruturação sin
tagmãtica somente compatível com determinantes ou fatores específicos
da linguagem poética. A linguagem prosaica repele
tais construçoes como aberrantes de sua homogeneidade no plano
sintático, e de sua linearidade no plano semantico. Nao preten
do estabelecer cora isso cânones restritivos do exercício livre
da prosa, ou delimitar o campo de preferencias e opções do escritor
em matéria lingüística.
Admite-se perfeitamente que um romancista, em certo trecho
de sua obra, intercale a seguinte frase: "Desde antanho projetamos
a morte no muro do que somos". Embora haja qualquer coisa
de estranho e inusitado nestas expressões,compreende-se que
elas ocorram dentro de um contexto em que o seu sentido, puramente
descritivo exerce função esclarecedora a respeito do que
vem antes ou do que virá depois. Trata-se realmente de uma ima
gem ( a morte projetada no muro do que somos) que, no poema,
vale por si mesma, porque tem dentro dela própria, o seu obje
tivo principal que é desferir o impacto sobre a nossa sensibilidade
.
Em prosa, a imagem surge como função substitutiva ou, mesmo,
puramente referencial ou simbólica, apesar, em certos casos,
de seu inegável teor poético. Notem que digo teor poético,
e nao feitio ou caráter poético. É o caso, tantas vezes ci
tado por mim, da esplendida imagem de Proust sobre Albertine.
"Ela era unica e portanto, inumerável". Esta imagem, na economia
interna do romance proustiano serve de sintese da persona-
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gem equívoca e mu 11ifacetada de Albertina. Observem que digo
serve. Querendo exprimir a sua funcionalidade no contexto, isto
é, o seu papel revelador da psicologia de Albertine, da sua
personalidade rica de aspectos, indevassável pela analise. Ntfda
disso acontece no poema com os versos citados:
"Desde antanh o/concebemos seu vulto./ Desde antanho/ a pro
jetamos/ no muro do que somos. /Limpa nos pare ce :/arro i o, lebre"
.
Vejam bem: nao hã continuidade linear, homogênea ou uniforme
entre os dois primeiros versos, os três seguintes e os dois
últimos. Nao ha tema a desenvolver, nao hã seqllência lógica,
prosseguimento ou, mesmo, coerência, sentido, interligação de
palavras no texto poetico. 0 que se observa é o feitio abrupto,
agressivo das palavras nos versos , a sua incontinência ver
bal e léxica, o caráter violento, intempestivo, absurdo de sua
inopinada presença. Somente ao poeta é dado dizer da morte:
"Limpa nos parece:/ arroio, lebre."
E pergunta-se: por que nao nos escandalizamos? Por que,
mo Platao, nao o expulsamos do nosso convívio e da nossa republica?
A resposta é complexa: porque se estabelece entre o lei^
tor receptivo ao "pathos" lírico e o criador uma espécie de
cumplicidade na subversão linguistica, no deitar abaixo cânc>
nes e preceitos, no reduzir a escombros convençoes milenãrias.
Esta cumplicidade entre o leitor e o poeta não significa renún
cia ã exegese semantica do poema, pois consiste apenas em considerá-
la inoperante.
0 que haverá de comum entre a morte e a circunstancia dela
nos parecer "limpa"? Quais são os atributos do "arroio" e da
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"lebre" que se encontram em nosso desaparecimento total e absoluto?
Evidentemente nenhum de natureza semantica, por nao haver
domínio algum significativo que corresponda às propriedades de
que participem "arroio", "lebre", "morte". 0 que há, em tudo
isso, se reduz ã imagem de complexos interativos, atuando fisicamente
sobre os referidos vocábulos, explicitando o seu
fundo comum de natureza sensorial ou cenestésica. As imagens
sensíveis do "arroio" e da "lebre", associadas ãs sensações auditivas
de murmúrios no "arroio", ãs sensações visuais de ligeireza
e da prontidão de movimentos da "lebre" representam
o fundo em que surgem, de repente, a presença da morte. Esta
presença permeia os poemas seguidos sobre ã "Visitante Insólita",
"Disciplina", "Da roupa final", "Do hábito", "Sepult¿
mento". No poema "Disciplina", Nejar passa a "Ordenar a
morte/ ruflando-a coesa,/ contra o sul, o norte/ e outras redondezas,/
ruflando-a, ruflando-a/ e que nada sobre/ de seu ru
de golpe,/ salvo referencias." - atribuindo-se o poder mágico
de ruflar á "visitante insólita", munida de asas, depois de
atribuir-lhe o murmúrio, o desenvolvimento do "arroio" e a ligeireza
alerta da "lebre". Em "A roupa final", o poeta interroga
"Qual a roupa / que vou vestir/ para tao grande / acolhida?"
- dando-nos a impressão do abraço fatal, comprimindo carnes.
E notem que esta última interpretação nao é semantica, e
sim visual, muscular e tãtil. No último poema, desta seqüência
lírica, "sepultamento" , Nejar "ordena" as duas estrofes finais:
"Jogral fui, depois réu / agora maço de vento/ enrolado
num chapéu. "Nao me sintam sentimentos./ Meu invento / é estar
sofrendo menos / quando tento."
Nestes versos, ocorrem expressões como... "maço de vento/
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enrolado num chapéu" - em que o contato interno com os sentidos,
através da representação visual e cinética da cena descri
ta, provoca a galvanização de ocorrência pela imagem. Na estrofe
seguinte, realça o primeiro verso - "Não me sintam senti
mentos" pela redundância na ênfase dada ã indiferença do poe
ta, ao defrontar a eternidade. £ certo que antes, no mesmo poe
ma, jã havia declarado: "Doido ou possesso,/ nada peço,/ enter
reu-me." E mais adiante, reitera: "Sem fardamento para o rito,/
solene ou ridículo,/ enterrem-me." Notem, mais uma vez,
fato totalmente esquecido pela crítica de poesia em geral, que
todas essas expressões se concatenam, interativamente, sob o
signo das imagens visuais, embri cadas no texto lírico como parasitas
no dorso nu das árvores.
0 repertório imagístico, cravado na cerne da representação
visi ai desdobra-se diante dos nossos olhos, através de cenas
esparsas ou de presenças vivas, sob o sortilegio da evocaçao
ou da reminiscencia. Ninguém percorre as linhas precedentes,
sem evocar imagens presas por elos fracos ou vigorosos às palavras,
tonalizadas afetivamente, que se ordenam na série "doi
do ou possesso" , "enterrem-me", "sem fardamento para o rito,/
solene e ridículo/, enterrem-me". Como desconhecer o lastro
afetivo e sensorial, no sentido visualisante, de termos duros
e fortes como esses?
0 lastro s ens itivo-motor das imagens poéticas, em Nejar,
constitui garantia do movimento que dinamiza ritmicamente as
suas estrofes. A poética nejariana desdobra-se e evolui na base
da açao verbal com mutações bruscas na tematica e na busca
infatigãvel do "ostinato rigore". Esse "ostinato rigore" é pe£
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seguido, sob todas as formas nos poemas cuja epígrafe "Dos mor
tos" constitui prolongamento do tema anterior. No primeiro "Fi
delidade", destacam-se os seguintes versos da primeira estrofe
"Parai - murmúrio -/ convosco vou caminhando./ A cada margem
- murmúrio -/ e os mortos andam". Vejam bem: tanto nestes
versos como em todos os outros citados, ocorrem palavras que
mantém contacto interno com os sentidos. A palavra "murmúrio"
de ocorrência reiterada no texto, de feitio onomatopaico, está
munida de ressonância auditiva. 0 mesmo acontece com "parai",
sob o ponto de vista de detida no movimento, com "vou c¿
minhando" como sucessão de passos, com "margem", visualisada e
repercutida em "murmúrio", com "os mortos andam" ligada ã ima
gem cinetica e, ao mesmo tempo, lúgubre.
Na linguagem poética, as palavras, por necessidaae interna
e coerçao de natureza lírica, mantém contacto com a carga das
imagens sensíveis e concretas. Nao é poético o termo abstrato,
destituído de lastro sensorial, como "idéia", "conceito", "determinismo",
"democracia", "epígono", "precursor". Ë evidente
que tais termos podem figurar no poema, porém nao como abstrações
desligadas da realidade canalizada pelos õrgaos sensíveis,
e sim através de vínculos explícitos com vocábulos de ccj
notaçao empírica ou de referencial denotativo. A poesia autêntica
deita raízes naquele vocabulário, enriquecido pelas reações
de tonalidade sensível, que afetam diretamente o gosto, o
olfato, a visão, o complexo auditivo ou as reações sensitivomotoras.
Nao há poema puramente cerebral, embora Paul Valéry,
seguindo a linha de Mallarmé, se compreza no jogo abstrato de
idéias. Cabe ao crítico, entretanto, discernir com agudeza os
esboços e lineamentos da poética valéryana para descobrir ne-
21
la, sob a crosta da idéia, o latejo das reações sensíveis. £
assim que no famoso poema "Cimitière Marin", celebrado pelo
seu obscuro e ostensivo cerebralismo, figuram versos como estes:
" 0 pour moi seul, à moi seul, oh moi même./ Auprès d'un
coeur, aux sources du poeme./ Entre le vide et l'évenement
pur,/ J'entends l'echo de ma grandeur interne,/ Amere, sombre
et sonore citerne/ Sonnant dans l'âme un creux toujours futur:"
Havera poucos exemplos, na aparência, de maior voluptuosidade
verbal, a cata de termos esvaizados de conteúdo interno,
no surto livre de sua indeterminaçao semântica. Reparem no "Au
pres d'un coeur, aux sources du poeme," dirigindo a sua atenção
para - "Entre le vide et l'évenement pur" - a fim de se
concentrarem, saltando dois versos, en: "Sonnant dans l'âme un
creux toujours futur!".
Parece inegável, entretanto, que o poeta identificado com
o "Cemitério Marinho" nos versos iniciais, se concentra dentro
dele mesmo. E onde se refugia ele, nos seus próprios domínios?
A resposta está no poema, irredutível a parafrase em prosa. A
referência ao coraçao como fonte do poema e a esplendida imagem
da cisterna, onde se submerge o futuro sempre renovado e
sempre vazio têm qualquer coisa de mais concreta do que fatos,
situações ou acontecimentos palpáveis.
A problemática poética valéryana concentra-se em explicitar,
através da representação sensível, o fundo objetivo, de
participaçao direta, de experiência acumulada que se sedimenta
na forma abstrata das idéias. Os versos de Valéry, em "La jeune
Parque" e "Cantate du Narcise" exploram essa profunda liga-
22
ção que prende o conceito, a lei ou princípio as raízes da sen
sibilidade, aos processos da experiência tatil, olfativa, visual,
auditiva ou muscular. A linha ascendente que interliga
as estruturas dos orgaos sensoriais com os processos e operações
do cérebro segue um caminho tortuoso, cheio de desvios e
de colaterais.
A linguagem poética de Nejar tem qualquer coisa de selvagem
ou de bárbara quando comparada ao refinamento e a sutileza
da linguagem poética de Paul Valéry. Nejar poetiza por sacudidelas
e tropeços, enquanto Valéry e o movimento alado em um
céu azul, sem nuvens. 0 poeta riograndense, egresso dos pagos
e das coxilhas, usa palavras como pedras atiradas em alvo incerto,
removendo entulhos para abrir caminhos até o repouso no
esquecimento e na quietude.
Degusta a vida, come, bebe, movendo o corpanzil, aos goles
rápidos e rumorosos. Nejar é o campeador, batido pela aspji
reza do vento, crestado de sol, exuberante de gestos, bebedor
de chimarrao, estômago avultado pela intemperança na deglutição
do churrasco. A meta, porém, e a poesia que ele mantém seil
tada em cima dos seus joelhos, a conselho de Rimbaud. Tem atra
ção pela morte, transfigurada em "concha de nuvem", em "silêncio",
em sopro: "Ha um invólucro apenas/ a ser quebrado./ Meus
mortos,/ ha um involucro apenas / e os sonhos vastos."
Este invólucro, em Nejar é espesso e compacto, embora recubra
aspirações febris e "sonhos vastos". 0 poeta, como todo
riograndense, é um introvertido, voltado para o mundo, mas de
dentro para fora e não de fora para dentro. 0 seu linguajar,
na poetica e no convívio, tem ele como centro irradiador.
23
Nos poemas e sempre ele que fala:
"Fechado para o balanço / de viver ou esquecer./ Fechado./
E ainda julgo-me eterno, / filho de outros pais./ e mais adiante:
"Exterior, como a fachada de um prédio,/ nasço e morro, ao
mesmo tempo, /vaso comunicante de tudo, / nasço e morro / na
pele e nervos."/ "0 eterno é isto: / fechado para balanço."
No poema "Vida eterna", o ultimo da "Ordenação primeira " ,
reza.a derradeira estrofe:
"Vida eterna,/ vida eterna,/ movo-me em ti./ Movo-me em
teus filhos/ como uma locomotiva / sobre os trilhos."
Vejo Nejar, trepidante na sua irresistível semelhança com
Baco jovem, coroado de louro, taça na mao, aedo de odes e dit¿
rambos, erguer o seu brinde a vida eterna.
URDENAÇÃO SEGUNDA -
Na "Ordenação Segunda", Carlos Nejar atinge ponto máximo
em matéria de despojamento e de sobriedade verbal. 0 ritmo, bre
ve e curto, reduzido a unidades espacio-temporais, atua como
cadencia sincopada, corte cerce no decurso de seqüências interrompidas
apenas iniciadas. Nejar cultiva o egocentrismo lírico
de auto-comtemp1açao no espelho que reflete ele mesmo, de corpo
inteiro. Mas o poeta gaúcho projeta-se nos objetos e nas
coisas, em que descobre sua própria imagem. Os pagos, as coxilhas,
as querências, o céu aberto, o forum obrigam-no a
sair de si mesmo para que, ao regressar de seus poemas,
tenha a alegria e a surpresa do reencontro.
A sua obsessão com a morte ê manifestaçao de força inte-
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rior e de exuberância na alegria de ser. Ele fala dos mortos
como se fossem vivo, acótove 1ando-nos com a ponta dos ossos.
A sua poesia é autentica, na medida em que Nejar nunca sofreu
influencias, nem apanhou frutos de quintal alheio. 0 vinho que
bebe foi extraído de sua propria vindima. Os seus poemas têm
a marca de sua garra, crespa e sonora.
Daí o desrespeito e a violência com que trata a linguagem.
Ceifa palavras, no trigal da língua, expurgando ervas daninhas,
e mondando excrescencias, superfluidades ou intumes cimeli
tos. Ê um cirurgião que escapela palavras como se fossem tumo
res. Disseca os termos e os vocábulos, examinando-os por dentro.
Refreia os impulsos, canalisando-os pela disciplina e pelo
regime do rigor estilístico.
Cultiva o rigor na faina dos versos, na arquitetônica do
poema, no esboço, no delineio e na inventiva. Ele pode dizer
de si mesmo o que Democrito declarava, ao visitar Atenas:
"Eu era o único sóbrio entre bêbados." A sobriedade, em Nejar,
é feita de contensao em matéria de indisciplina ou de incontinencia
discursiva e verbal. Nejar fabricou a sua linguagem po£
tica, vigorosa de nervos e de músculos encordoados por dentro.
0 poema nejariano é o enduramento em que os versos estão munidos
de subsolo. A sua poética nao é de superfície, mas de prof
und i d ad e.
Na linguagem comum, observa Chomsky, certos princípios uni^
versais devem operar, conjuntamente em regras específicas, para
a determinação da forma e do sentido de expressões lingüísticas
inteiramente novas. Ora, nada disso se verifica na linguagem
poetica, em cujo contexto nao atuam princípios univer-
25
sais. 0 unico princípio válido, no dialeto lírico, é a "integridade"
do poema, no sentido que Tovey atribui a composição
musical. Cada poema, como cada sinfonia ou sonata, está fechado
dentro de si mesmo.
A análise das estruturas líricas incide sobre cada poema
com criterios diferentes, desde que suas propriedades ou atributos
variem de intensidade ou de extensão. Toda obra-de -arte
constitui um microcosmo; nao há nada de comum entre os "Lusíadas"
e o "Paraíso Perdido", embora ambos participem da ênfase
e da inflaçao discursiva que caracterizam a epopéia. Entre Vir
gílio e Lucrécio há o abismo que separa, nao somente as temáticas
como também a arquitetônica estilística e a modulação
rítmica.
A noção de "ostinato rigore", subjacente ao poema autêntico,
é que comanda a construção da obra no plano verbal, e no
plano rítmico. É,por isso, que toda obra-de-arte desenvolvese
como tentativa para atingir o máximo de poder comunicativo
com o mínimo de dispèndio de recursos técnicos, Este princípio,
que concilia o mínimo com o máximo, esta na base do rigor
como atributo estilístico e expressividade estética.
Voltando, porém, ã definição de Chomsky, cabe observar que
a linguagem poética, nao dispondo de princípios gerais, jamais
poderá explicitar regras. Por nao estar munida de regras, ao
contrário do que acontece com a linguagem comum, a linguagem
poética deixa de se submeter a cânones sintáticos ou semânticos.
0 dialeto lírico, livre por excelencia, exorbita de leis
e de normas. Ele desenvolve-se como a semente que rompendo a
crosta espessa, se transforma em árvore. As leis de seu desen-
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volvimento se reduzem ao seu próprio curso, isto é, a expansão
da forma modulada pelo ritmo.
A técnica da modulaçao rítmica subtende a forma criada pelo
estilo. Em resumo, o poema absoluto, sem condições restriti
vas, como "Un coup de Des" de Mallarmé, ou "Friedenfeuer" (Celebração
da Paz) de Hoelderlin, traça dentro de si mesmo, o ru
mo e a diretriz da sua atividade criadora. E eis porque o poema
autentico explicita a criatividade no ato mesmo de se constituir
em realizaçao estética. Ele é, na sua presença viva, o
fulcro e o cerne da criatividade como estado puro.
A lei geral deste trabalho, portanto, consiste em afirmar
que o poema sendo criatividade na expansao da forma, escapa iri
teiramente aos cânones estéticos que regem o ritmo sentenciai
da prosa, em primeiro lugar. Em segundo lugar, a linguagem po£
tica, a fórmula-comando se corporifica, ao contrário da prosa,
no ritmo vocabular. Daí, como conseqüência, as diferenças que
assinalam, a estrutura semântica da frase, d i s t ingui ndo-a frori
talmente da estrutura semântica do verso. A estrutura semantica
da frase, segundo Chomsky, depende das suas partes componen
tes. As partes integrantes da frase, como todo mundo sabe, sao
locuçoes que reúnem palavras formadoras de sentido.
No poema, porém, palavras reunidas nao formam sentido na
textura do verso, como se representassem locuçoes no interior
das frases ou sentenças. Ë assim que, no primeiro poema da "0_r
denação II", denominado "Retorno", surgem os versos: "Voltei
da morte,/ órfão./ Desci as escadas/ do empório;/ entre os móveis/
e os suspensorios,/ minha alma escorre./ Que alma?".
Ora, o comando do ritmo vocabular obriga o leitor a deter-
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se em cada palavra como se fosse dentro de uma muralha. A pala
vr a in tumes ce, no texto poetico, como tumor maligno, irrupção
repentina, surto irreprimível. Observem o "Voltei da morte, /
orfao." Nao ha representação semântica do domínio significativo
em qu'e os versos citados atuem como locuçoes ou sintagmas
na frase. Nao se trata, em primeiro Lugar, de enunciado verbal,
cujo "sentido" decorra das relações de correspondência se
mantica entre o termo e a realidade do objeto ou da situação
correlata. Qual e, portanto, o setor empírico que permita aferir
o grau de adequaçao entre o termo e o objeto por ele desi¿
nado? É evidente que nada, no mundo real ou abstrato, corresponde
ã "Desci as escadas/ do empório;/ entre os móveis/ e os
suspensorios,/ minha alma escorre./ Que alma?".
0 poeta nada afirma ou contesta, usando expressões como se
fossem terrenos devolutos onde tudo cabe, servindo de entulho.
Nada declara, enuncia ou esclarece. As palavras servem aqui co
mo o fio de Ariadne no labirinto. Mas acontece que este fio se
tornou quebradiço, e o labirinto nao tem saída. Existe, entretanto,
certa ordem estética no caos lingüístico que é o poema.
0 significado desta ordem, que se impõe a desordem semantica
das palavras no verso escapa inteiramente aos critérios da aná
lise gramatical ou estilística dos trechos de prosa.
Trata-se, sem dúvida, de certa ordem, na subestrutura do
poema, que se traduz como diz Paul Valéry, em consciência de
uma ligaçao profunda. Esta consciência crítica de vínculos que
atuam, na escolha de palavras, como afinidades eletivas, repre
senta o sistema de preferências do poeta. Esta ordem, que se
sobrepoe â desordem semântica, aferida pelos critérios válidos
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na prosa, constitui técnica que ultrapassa os limites do intelegível.
Ë necessário sensibilidade alerta para o domínio da
intuição concreta em que, de acordo com a fórmula de Valéry,
os "valores de choque" predominam sobre os "valores de repouso".
Os valores de choque, incorporando a desordem semântica
do poema moderno, reagem continuamente, na linguagem poética,
contra a atitude con tempi ativa, a serenidade clássica, o espírito
filosófico, o academismo, o ideal de beleza.
Ë inegável que os valores de choque da juventude contemporanea
desprezam as linhas harmoniosas, a linearidade do homogéneo
e do uniforme. 0 mundo mo de ï ao, sob o ponto de vista da
ideologia política, se bifurca em dois submundos. 0 submundo
dos que preferem a injustiça ã desordem, como Goethe, e o submundo
dos que preferem a desordem a injustiça como Karl Marx.
A juventude manifesta preferencia pela desordem, afastando-se,
como se observa na França, tanto de Goethe como de Marx. Enquanto
isto se verifica, em todas as artes, os cânones estéticos
foram explodidos sistematicamente. Nao cabem mais na critica
modei.ia, definições da beleza e do sublime que atuassem
como princípios reguladores. Os conceitos sintéticos, como har
monia, estrutura simétrica, equilibrio de massas, perspectiva,
unidade interna perdem todo e qualquer sentido.
0 predomínio da arquitetônica sobre a inspiraçao faz com
que a análise sobrepuje a síntese. Mesmo por que a analise resulta
de uma longa paciência, enquanto a síntese obedece a impulso
irresistível. 0 perigo da análise é que se perca nas minúcias,
ao passo que o perigo da síntese consiste em satisfazer-
se em generalizações em conteúdo.
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A arte poética fez surgir, na linguagem, os valores de cho
que que sao positivos e concretos como a revolta, a insubmissao,
e o grito de protesto. Nao há poeta auténtico que se compraza
em generalizações abstratas. Os valores de choque, no
dialeto poético, sao valores de análise, não de síntese ambiciosa
e vazia. Os valores de análise aguçam a inteligência crí
tica do poeta para os limites da linguagem como técnica diseur
siva. 0 discurso poético, impregnado de valores de choque, procura
na densidade e na concentração verbais o que nao se encontra
na efusao e no derramamento.
Em Nejar, a arte poética, páginas adiante, irrompe de conflitos,
de ebuliçoes, de contacto interno com os sentidos:
"Abre a gaveta do tempo/ sem etiquetas, poema./ Abre a gaveta
e limpa-a/ do esquecimento". No final do poema "Poética",
as estrofes despojadas do superfluo e do acessório, adquirem
ressonância profunda:
"Cavo o poema / com meus valores, / cavo o poema / com desespero
/ como se cava um filho." // "Em tudo o que crio / ou
destruo; na asa da gaivota, na grota." // " 0 poema como balan
ça / entre a mesa e o pensamento./ Mais perto deste, / quando
me alcança."
Reparem bem que o poema para Nejar, é como a terra revolvi^
da pela enxada. 0 sentido dos versos, citados anteriormente,
não decorre das relações de correspondência semântica entre as
palavras e os objetos por elas designados. Esta seria a função
simbólica das expressões verbais. A estrutura profunda do po£
ma está na tensão conotativa entre as referências simbólicas e
o repertório imagístico das palavras. Se o poeta diz "Cavo o
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poema / nos meus guardados, / carta de terras/ que não reparto".
E mais adiante: "Cavo o poema / com suas sardas / e seus
fonemas. / Tardo, recluso / eu mesmo uso / de suas penas, / ur
dindo as teias / desta vivenda/ na noite plena. / Absalão, cavo
o poema". - parece evidente que Nejar nos obriga a entrar,
pela porta adentro no recesso de suas imagens. A imagem nejariana
canalisa e transmite interações diretas ou reversíveis
de "cavo" sobre "poema", de "sardas" sobre "fonemas" e, no ver
so final de "Absalao" sobre "cavo" e sobre "poema". Estas interações
de fundo puramente sensorial, explicitam entrechoques
intersilábicos, de efeito auditivo. Suscitam, além disso, visualizaçao,
com intensa tonalidade afetiva, como a da enxada
que penetra os estratos da terra, como o instrumento poético
penetra as camadas profundas das palavras.
Eis ai, em rapido resumo, a suma poética desse estranho
riograndense que atingiu os limites da linguagem com a energia
e a violencia do campeador ao explorar os recantos e os rincões
na cainpanha gaúcha. Nao conheço nenhum poeta da nova geração
que tenha, como Carlos Nejar, atingido tao diretamente
os limites da expressividade lírica. Ë verdade que o seu eqtlilíbrio
se mantém instável nessas fronteiras oscilantes, mas as
suas aptidões acrobáticas talvez lhe garantam longa permanência
ã beira do abismo.

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