segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Armando Freitas Filho











Música do ar

Rogel Samuel




Armando Freitas Filho é um extraordinário poeta como se pode ler neste seu poema compacto, composto na metafísica das madeiras, mas nada daquilo que na orquestra se chama de som delicado, suave e bucólico: as madeiras compostas por Flautas, Clarinetas, Oboés e Fagotes, mas nem violinos, violas, violoncelos, contrabaixos, harpas, sopros, flautas, clarinetas, oboés, fagotes, ou seja, música, música de árvores, nada disso, mas o bater do machado bruto, áspero, cortador, pancada de estaca, ou bate-estaca, no crescimento da cidade de concreto em direção estelar:
AR

Música de árvores.
Não a das folhas e ramos.
Mas a outra, para percussão solo.
Madeira, raízes, cascas, nós, galhos.
Tudo que pede machado, corte, pancada.
O que é duro - áspero - bate, e estaca.
O que estala e cresce da terra contra as estrelas.

Armando Freitas Filho, “Cabeça de homem”, Editora Nova Fronteira, 1991








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Para Ana Cristina,
em memória



Armando Freitas Filho


Ainda faltam muitos passos
para atravessar o saguão do mal-entendido.
Como não escorregar na cera
se os sentidos
já não me apóiam
e deslizam para longe
para todas as direções
como as contas de um colar
num chão de gelo
e nem o olhar consegue mais
alcançar, conter e contar
suas pérolas-lágrimas?
Como agarrar ou ser agarrado
nesse deserto triunfante
por alguma coisa que me ame?



Do livro 3X4 Editora Nova Fronteira, 1985



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Dores e alegrias transformadas em poesia



Mànya Millen






Fio terra, de Armando Freitas Filho. Editora Nova Fronteira, 86 páginas. R$ 17


A última década foi, para o poeta Armando Freitas Filho, um período de grande turbulência emocional. Feito de intensas dores (a perda do pai e da mãe) e de uma extrema alegria (o nascimento do segundo filho, Carlos, hoje com nove anos). No início de 2000, Armando também completou 60 anos de vida e confessa ter sido assolado pelo medo da morte. É natural que muitos desses sentimentos, misturados a memórias de tempos diversos, estejam presentes em "Fio terra", novo livro de poemas que ele acaba de lançar pela Nova Fronteira. Mas o que poderia ser visto como um breve "diário de resmungos", como ironiza o poeta, toma aqui a única feição possível para Armando: a de um reflexo literário de emoções e fatos. Que poderiam estar presentes na vida de qualquer um de seus leitores.

- Esse livro, que eu chamaria de um retrospecto ferido, tem toda essa carga de vida e morte, de espanto e constatações. Mas eu não escrevo para me livrar de nada, escrevo para as coisas se agregarem a mim - descreve Armando. - A má poesia tem função catártica, geralmente serve para se livrar de dores-de-cotovelo e outras dores. A minha poesia, e de outras pessoas, serve para aumentar essas dores. Na boa literatura, seja em prosa ou em verso, o único personagem real é a linguagem. Importa não o que ela diz, mas como ela diz.

Lembrando que os poetas devem estar com as feridas sempre abertas para alimentarem seus versos - "(...) Tão sentido na hora do rush/ da lembrança, na hora da volta/ em pleno trânsito, no centro/ da cidade, agora te acompanho/ cada vez mais perto, te incorporo/ entro no teu passo - pai, irmão/ amigo, eu mesmo, sem retorno", escreve ele, rememorando a companhia paterna - Armando diz que o fundamental é não perder de vista uma equação aparentemente simples mas de difícil equilíbrio:

- O bom poeta, o bom escritor, e não é que eu consiga sê-lo sempre, não escreve "sobre", mas "com" aquele sentimento, aquela memória. São problemas, não temas. "Fio terra" não deixa de ser um diário estilizado, mas eu escrevo para ninguém. E quanto menos endereço e CEP a minha poesia tiver, maior será o seu alcance. A linguagem é que faz com que a literatura deixe de ser um resmungo pessoal para se encontrar no outro.





Por isso, o poeta entende sua criação como uma "montagem urgente de dois ramais de uma só voz". Um nobre, interior, que lida com a literatura, as artes e suas influências e o outro externo, "vulgar e instintivo, que capta dicções do que está no ar". Fundir essas vozes em uma obra particular e ao mesmo tempo universal é o grande desafio.

- Essa a distinção entre ser problemático ou apenas temático - observa Armando.

"Fio terra" exibe como fio condutor a coerência dos sentimentos múltiplos vivenciados e problematizados por Armando, desde o passar do tempo até a pulsão do desejo, incluindo a própria poesia "que se auto-escreve, se auto-corrige". O livro é dividido em duas partes: a primeira, "Fio terra", é um longo poema-diário de 450 linhas (que levou três meses para ser escrito) e a segunda, "No ar", uma reunião de 27 poemas. Todos criados a partir de 1996.

- Vou escrevendo sempre, juntando material. Escrevo a qualquer hora porque o poeta escreve em trânsito, sempre, a qualquer hora - diz ele. - Um dia, de repente, eu tenho um punhado de poemas que querem ter uma coesão, querem ser um livro. Aí eles vão passando pela peneira da crítica. Além de não ser complacente comigo mesmo, mostro a alguns leitores implacáveis. Me interessa até a opinião violenta, uma leitura não técnica, amadora.

Antigamente, recorda Armando, seus leitores implacáveis eram dois grandes amigos, já mortos. O primeiro, o também jornalista Tite de Lemos, com quem Armando fez sua estréia numa grande casa editorial - a própria Nova Fronteira, onde está há 21 anos - numa coleção de poesia. A outra era Ana Cristina César, jovem e talentosa poeta que pôs fim à própria vida em 1983, e que tornou Armando curador de sua obra.

- Para mim Ana era tudo - lembra Armando, ainda se emocionando ao lembrar da morte da amiga, de quem publicou quatro livros póstumos.

A ausência desses leitores ainda é sentida, emocionalmente e literariamente, mas Armando já aprendera, com um grande mestre, a reconhecer uma obra pronta e saber que há "uma cadeia subjacente em um livro de poemas".

- Foi Carlos Drummond de Andrade quem me ensinou isso. Um dia ele me disse: "Há poemas que abrem o livro, outros que são do meio e outros que fecham". Simples assim.

Armando também aprendeu uma lição com outro poeta, Manuel Bandeira, que forma, com Drummond e João Cabral de Melo Neto, sua "Santíssima Trindade" - o maranhense Ferreira Gullar também é agregado como o "quarto mosqueteiro" - de devoção. Por indicação da professora Cleonice Berardinelli, Armando, então com 23 anos, enviou suas primeiras poesias para Bandeira ler. Quando este marcou um encontro, Armando passou boa parte do tempo mudo na casa do poeta, que proseava sem parar, sobre assuntos diversos, com o pai do novato.


- No final do encontro Bandeira se virou para mim e disse, com aqueles dentes todos em teclado, que tinha achado meu livro interessantíssimo, mas que eu deveria procurar uma opinião contemporânea. Só um contemporâneo avaliaria com mais propriedade a minha obra. E me indicou Ferreira Gullar, que já era Ferreira Gullar, e José Guilherme Merquior. Procurei este último, que tinha mais ou menos a minha idade, e foi ele quem arranjou papel e gráfica para a publicação daquele que seria meu primeiro livro, "Palavra", em 1963.

Desde então já são 37 anos de poesia (em livro), um ofício que Armando lembra só poder ser exercido com muita paixão. E (por que não?) uma disposição para a briga.

- Existem muitas brigas entre nós, os poetas, que não derramamos sangue, e sim tinteiros. Mas é uma competição sadia, de tentar superar um ao outro, velhas e novas gerações. Brigamos para criar têmpera, em nós mesmos e no outro.


Um dia
impossível de lilases.
Uni dia
ou um dilema?
Qual a face da moeda
que resistirá mais tempo
fechada na palma
ao suor da corrosão, à ferrugem
emudecendo uma voz do dueto
para dourar a outra, rim solo
para durar ao sol de um dia inteiro
às voltas com sua própria sombra
num duelo único, unânime
no espelho, longe das luzes dos diademas?
Açucenas: não me lembro
de nenhum céu que me console.
só o que leio a sós
são os segundos sentidos
os açúcares agudos
na véspera do azinhavre
o silencioso rasgado azul
de uma bandeira.

A tarde precipita sua cor
cai, no começo
no princípio da noite
e o que ainda aqui resiste
meio fera, ao precipício
ficou na beira da taça
que não suporta mais
sequer um riso
pois todo cristal está sempre
na iminência, um minuto antes
de partir.


Por barbear
com a cara de encontro ao dia
que espera e arranca
árvores vivas, folhas de guarda
de dentro da noite em claro.
Falso rosto
impossível prever
a variação seguinte
se de sol, se de stress
no espelho sem controle.



Cortaram o que vivia
rente ao risco do chão do chão.
A frio, no açougue
com o machado da chacina.
Mato, no pé da estátua
que se enferruja no céu
e nos canteiros desordenados
razzia a navalha
contra o que ainda respirava pela
raiz.

Falo pela alma
pelo que foge para fora
do concentrado foco do corpo:
rude - com raiva e relva
contra a pele, à contraluz
metade cavalo
pedaço de pedra sem asa
terra-a-terra, e irredutível
falo
com coração e técnica.






RAVEL


Todo telefone é terrível - negro
guerrilheiro, à escuta na sala
disfarçado ao lado do sofá
à espera, no gancho
sempre na véspera
com o grampo da granada
já nos dentes.
A única saída é ocupá-lo
para que não estoure
(não posso te agarrar aqui
nem pelos fios dos cabelos
pare antes que toque
e o infinito acabe).
Todo terrível é telefone - negro
à escuta
guerrilheiro à espera
ao lado do sofá
disfarçado na sala
na véspera da granada
com o grampo nos dentes fora do gancho
ocupando a única saída
para que não estoure
(não posso nem pelos cabelos
antes que acabe e toque
o infinito, te agarrar, nos fios, pare
daí).

O corpo


Acrobata enredado
Em clausura de pele
Sem nenhuma ruptura
Para aonde me leva
Sua estrutura?

Doce máquina
Com engrenagem de músculos
Suspiro e rangido
O espaço devora
Seu movimento
(Braços e pernas
sem explosão)

Engenho de febre
Sono e lembrança
Que arma
E desarma minha morte
Em armadura de treva.







A felicidade pode ser de carne

A felicidade pode ser de carne
de pele apenas - corpo sem cara
nem cabeça, mas com a boca máxima
e muitos braços, peitos, coxa
perna musculosa, clavícula
omoplata, ventre liso esticado
peludo no lugar certo do sexo
e mais o cheiro preciso, exasperado
da axila, virilha, pé
tudo chegando junto, de uma vez
ou aos poucos, esquartejado.




Capital federal

A planta no plano
avança na ampla
pauta do espaço:
apalpa - planalto

brotam do barro
bruto da brenha
casas e queixas
no caos de breu

as pedras se apuram
em prédios: maquette
imaculada maquillage
de cal e de mármore

no lixo e na lama
o novelo da vida:
as linhas do luto
os lanhos da luta

trevos de asfalto
e fôlego: trançados
trajetos traçados
sem trégua: a régua

tendas de toldos
rotos: as ruas
se rasgam tortas
na terra puída

palácios de papel
almaço - cenário:
lua de cartolina
lago de celofane

o povo se empilha
em casas capengas
em choças de palha
esgarçada: palhoças

monumento - movimento
de sol de pedra de
vento - se estampa
na página do espaço

borrão de barro
no branco - mancha
marcha multidão
crescendo do chão.


Matéria

Parece que os séculos
cuidam dos castelos
que no alto das montanhas
são o sonho das pedras
ou o desejo das nuvens.
Escrever é uma pedreira.
Se me atirasse daqui
de uma de suas torres de marfim
cairia, talvez
inteiro
em corpo reduzido
na página de qualquer jornal.
Escrever é uma pedraria.
Materia



Comunicações

Eu falo de mim - daqui -,
desta central,
pelo microfone do corpo,
por esse fio que vem do fundo
eu me irradio:

assim, numa transmissão de
sustos e rangidos,
veia e voz - ao vivo - sob tanto
sangue: - pantera escarlate
que passa e pisa

e se espatifa nesse chão:
pata de lacre,
grito! pingo sobre o alvo
tão tátil da minha carne,
nos panos

instantâneos do meu espanto
nas janelas
onde me debruço sucessivo
e vário, seqüência de mim,
em fotonovelas

me desdobro - quadro por quadro,
nos desenhos
de dentro do que sou e projeto,
aos poucos, - plano e pausa -
para fora

com a vida que me veste
pelo avesso:
- filmes de sêmen onde publico
figuras de suor e celulóide,
numa lâmina

de velocidade e de lembrança,
em fotogramas
de esperas e posturas - falha,
folha de slides-células, sopro
e pulso,
página de pele em que escrevo
o uso
a articulada letra do meu gesto,
o rascunho de rugas & rasuras
feito à unha

nas nuas marcas do meu corpo
no espaço,
e nos lençóis da claridade,
monograma, silueta, cadência,
e a fala

que se imprime nesta fita,
neste sulco:
- a linguagem como um fim,
- a linguagem por um fio,
e a morte em morse


Leia poemas do livro Lar, de Armando Freitas Filho

Novo livro é o apogeu de uma mudança na poética de Armando Freitas Filho, iniciada nos anos 1970



Armando Freitas Filho afirma sem esconder a tristeza: a descoberta mais importante para o homem é a de que o tempo passa, trazendo a inevitável destruição das coisas. Não dá para se iludir com outra verdade. Por isso sua poesia não perde o signo da urgência. Segundo o poeta carioca, de 69 anos, Lar, - assim, com vírgula -, reunião de poemas escritos entre 2004 e 2009, é o seu livro de maior intensidade. É intenso, por carregar a certeza de que tudo vai acabar. Em breve.

Lar, (Companhia das Letras, 136 págs., R$ 34) é o apogeu de uma mudança na poética de Armando Freitas Filho iniciada nos anos 1970. Naquele momento, explica a crítica literária Viviana Bosi no prefácio de Máquina de Escrever (2003), o seu estilo foi do elemento espacial para o temporal, do social para o subjetivo. A entrega apaixonada aos dramas pessoais perdeu o pudor.




Dividida em três seções - Primeira Série, Formação e Numeral -, a nova coletânea tem forte tom autobiográfico, mas não pode ser vista como a carteira de identidade de um poeta. Ela apresenta a reflexão de um homem perplexo com as marcas deixadas pelo tempo em seu corpo e espírito. Leia a seguir a entrevista do poeta ao Estado.

Segundo o crítico Sebastião Uchoa Leite, títulos de livros funcionam sempre como “índices”. O que significa a vírgula de Lar,?


Quem pensou nisso foi Sergio Liuzzi, o capista, que me apresentou o título com a vírgula. Fiquei espantado com a invenção, uma vez que ele não conhecia o livro. Ele até me perguntou se pode vir alguma coisa depois da vírgula. Sempre pode, respondi, como o aposto “doce lar”. Lar, é um livro da memória - universo cheio de vírgulas, de interrupções. A vírgula é a tradução visual de coisas interrompidas, ditas como a memória sabe fazer, por meio de surtos. A poesia se presta a esse tipo de apreensão. Até mais do que a prosa, com o seu fio contínuo.

Ao percorrer as três seções do seu livro - Primeira Série, Formação e Numeral -, nota-se que o eu lírico sofre transformações intensas. Por que fazer essa divisão?


O livro foi pensado assim. A primeira parte é iniciática, com as lembranças mais antigas. Falo das primeiras experiências com Deus e o sexo, da dificuldade de pertencer a uma família católica. É uma recuperação cheia de lacunas, ou vírgulas, daquele ambiente primeiro. Quando a gente escreve, isso já não é uma confissão, é ficção. Quando a gente escreve, não é um, é alguns ou é nenhuns.

Em Formação surge um poeta que lida com o peso das descobertas da juventude e busca se livrar da dependência, muitas vezes opressiva, dos pais. Existe aqui um incômodo maior?


Eu sou filho único. A luta amorosa com os pais é importante na minha biografia. O filho único tem um estigma. Não pode errar. Abel teve direito a Caim. Já o filho único não tem nem direito a um irmão ruim. Está sempre sozinho. Tem que cuidar dos pais quando chega a velhice, como fiz, sem um banco de reservas. Em Formação, há essa luta afetiva, com um traço sexual, entre o filho e os pais. Em Primeira Série, a escrita é camerística, em tom baixo. Em Formação, a voz se eleva, em caixa alta, e deblatera contra as prisões religiosa e sexual. Há poemas duros e custosos, como Gravador, que tem um duplo sentido. Ao contar a história de um gravador, falo sobre como se grava a dor numa pessoa. Certa vez, o (crítico literário) Antonio Candido me escreveu uma carta dizendo que minha poesia tem uma grande germinação de significados, resultado do duplo sentido. De fato, antes do Candido, não tinha dado conta dessa mania que ele configurou como estilo.

Numeral é a última seção de Lar, e a continuação de Numeral/Nominal, que abre Máquina de Escrever, livro que reuniu sua produção até 2003. Ela apresenta a problemática experiência de um homem caminhando para o fim?


Numeral é bem complexo. “Uma invenção diabólica”, segundo (a ensaísta) Heloísa Buarque de Hollanda. Em junho de 1999, comecei essa série numérica de poemas que vai acabar ou por tédio ou por morte. As poesias dessa seção de Lar, são especulativas. A voz se cala, pois expressa a reflexão sobre a morte. Contar é se cortar no gume de cada dia. Não à toa, no calendário, você arranca os dias.

Lar, possui um tom autobiográfico inegável. Ele é a sua carteira de identidade? Ou é uma investigação dos efeitos que o contato com os outros produz na sua existência?


Sem dúvida, é uma investigação. Você me deu a definição exata do livro. Uma carteira de identidade é plana demais, presa ao tempo, velha.

O tema mais recorrente de Lar, é a consciência sobre a passagem destrutiva do tempo. Essa é a descoberta mais importante para o homem?


Se não é a descoberta mais importante para muitas pessoas, deveria ser - estamos nos desfazendo. Vou completar 70 anos e a gente sente a decadência. As coisas que tocamos são marcadas pelo desgaste, que é a perda. Quando me convidaram a escrever sobre minha palavra preferida para o Dicionário Amoroso da Língua Portuguesa (2009), coletânea de autores de língua portuguesa, escolhi morte. O nosso corpo exibe a marca do tempo passando. É muito triste falar disso, mas é uma verdade ineludível.


No poema Castigo, aparece um sujeito que não sabe “a hora certa de apagar a luz/ de cair na cama e no sono”. Nele você cita um verso de Consoada, do Manuel Bandeira - “Com cada coisa em seu lugar.” Percebe-se a vontade de paz para uma consciência que fica cada vez mais insuportável, na medida em que se torna abrangente. A poesia pode ajudar na pacificação desse espírito atormentado?

A palavra insuportável cabe muito bem em Lar, e tem importância grande na minha escrita. Encontro o que não suporto, e vou até onde dá. A poesia pode tentar, mas não pacifica. Uma tecnologia de ponta da linguagem, ela exacerba, em vez de colocar cada coisa em seu lugar. É como a verruma que abre um furo na madeira. Temos essa vontade de paz, mas não somos capazes.




O poema Antiquário diz que “O acervo de uma vida se dispersará/ depois que ela parar”. Não existe nada que seja permanente?


Antiquário é o poema de Lar, que mais me toca. Eu vou responder com a ajuda da poesia Resíduo, de Drummond. “De tudo fica um pouco.”

Três poemas de Lar,:

Escrevo nas costas da mãe
conspurcada pelo amor
nas costas dos tios empertigados
pela indiferença e sarcasmo
na cara dos primos exemplares
reescrevo, corrijo, fazendo
pressão com o lápis rombudo
para marcar minha dissidência
na família programada, mas
sob os olhos sérios do pai
que me desencurva, e apoia
mesmo desconfiado
em palavra explícita para
não frisar demais sua intenção
seu ódio difuso que também
me atinge em forte trans
fusão, consigo, comigo mesmo
até alcançar a malvada consciência. (Poema Escrevo Nas Costas da Mãe, extraído da seção Primeira Série)

Mil folhas. Mesmo em algumas das mais
passadas, um pouco do sabor, um risco
de doçura e amargo, é remanescente.
Anamnésia construída pelo fato
e pela imaginação: vai do anátema
ao enaltecimento, expressos em alta voz
até ao murmúrio cifrado no coração.
O acervo de uma vida se dispersará
depois de ela parar: alguma coisa
aqui, nesta casa, para lembrar quem se foi
fica, sem roubo nem degradação, sobrando.
O resto, espalhado na desordem dos arquivos
dos sebos e brechós, nós defeitos
na mudança para lugar nenhum
perdido no limbo, reciclável em outro corpo
e destino, longe do clamor da hora
cada vez mais afastado do limiar original
da montagem do dia, à margem do relógio
rasgado por mãos alheias, posto fora
o sonho, que se açucara, perde o gosto, e fere. (Poema Antiquário, extraído da seção Formação)

Da casa dos três dígitos
não saio mais. Trinco.
Dia após dia de prisão
na cidade em carne viva.
Entre em si para sempre:
tendo de seu, apenas o bodum
ranzinza do corpo
que vai se resignando
a não perseguir o inominável
nem a se persignar (Poema 100, extraído da seção Numeral)


A cidade engatilhada

Armando Freitas Filho





NUMERAL


16

Para Mário Rosa

Escrever é arriscar tigres
ou algo que arranhe, ralando
o peito na borda do limite
com a mão estendida
até a cerca impossível e farpada
até o erro — é rezar com raiva.

14 VIII 2001



23

Escrever é riscar o fósforo
e sob seu pequeno clarão
dar asas ao ar — distância, destino
segurando a chama contra
a desatenção do vento, mantendo
a luz acesa, mesmo que o pensamento
pisque, até que os dedos se queimem.

10 XII 2001

De Numeral/Nomimal, 2003


MANUAL DA MÁQUINA CDA

A máquina é de pedra e pensamento.
Funciona sem água, deslizando
seu lençol de laje e lembrança
aberto e desperto por natureza.
Tem por motor o atrito, a tração
a alavanca que levanta quem lê
e o modela, diferente, a cada passada
pois se faz também diversa:
novos perfis que se enfrentam
assimétricos, e que não esperam
o encaixe certo, feito à regua
mas o impossível, irregular, sem
efes-e-erres, com recortes irritados
se aproximando, como no boxe —
através do choque, onde se juntam —
íntimos, podendo parecer ternos
apesar dos dentes, roldanas, o amor
arranca, em chão de escorpião.
Quando revista, de perto, por dentro
a máquina — que não se passa a limpo —
se compreende um pouco do engenho
do mecanismo de suas linhas partidas.

De Numeral/Nomimal, 2003



[FURO O SINAL VERMELHO]

Furo o sinal vermelho
que não me estanca
sangrando a seta do lado esquerdo
me enfio por agulhas, gargalos
gargantas, o mar está à margem
tem pressa, mas não sai do lugar
engarrafado, e ainda que felino
enferruja em frente à praia
enquanto rodo o Rio todo e tomo
sucessivos ônibus, táxis, metrô
e cada dia é irreparável
o corpo não tem férias
vai no arrastão, com a roupa da hora
sempre ao alcance de balas além
não fica em nenhuma parada
não salta, passa do ponto
queima a inflamável vida
enquadrado pelo sol, carburante
vencendo túneis
nadando no seu próprio sangue.

De Números Anônimos, 1994


[A CIDADE ATRAVESSA O DIA]

A cidade atravessa o dia
engatilhada.
Anônimo, mata ao acaso
e escapa, acossado
atirando para o alto
no alvo do sol certeiro.

Antes da pena d'água
o mar aberto se debate
inumerável, perdido
diante de palmeiras selvagens
temperado em heróica
e lírica consonância
com a lagoa inesperada
na boca seca do túnel
com o céu
reagindo no reflexo
tentando subir se salvar
mas resvala na pedra
isolado.

A noite afinal dispara.
Vou no vácuo, no intervalo
harmônico
entre dor e nada
acuado em corpo único
vivendo do próprio fígado.

De Números Anônimos, 1994


CORPO

Acrobata enredado
em clausura de pele
sem nenhuma ruptura
para onde me leva
sua estrutura?

Doce máquina
com engrenagem de músculos
suspiro e rangido
o espaço devora
seu movimento
(braços e pernas
sem explosão)

Engenho de febre
sono e lembrança
que arma
e desarma minha morte
em armadura de treva.

De Palavra, 1963





Heloísa Buarque de Hollanda entrevista Armando Freitas Filho



Helo:

Armando, Máquina de escrever é um título digamos “literal” referindo seus 40 anos ininterruptos de poesia. Convenhamos que esses 40 anos, enquanto sua máquina disparava letras e poemas, nosso panorama poético passou por uma infinidade de momentos chave, escolas, tendências, debates e algumas (ou muitas) brigas interessantes. Como hoje você diria que sua máquina de escrever atravessou esses mares ?



Armando :

Nadando, aprendendo a nadar quando fazia a própria travessia. A reação veio por reflexo: tendo à minha retaguarda a geração de 45, e à minha frente as vanguardas, optei pelo nado de peito e não pelo de costas, ou por não ficar boiando, passivo, repetitivo e diluído, no remanso da tradição. Se de qualquer forma o mar “não estava para peixes”, estava agitado e desconhecido, era mais fácil e, paradoxalmente, mais difícil acompanhar os meus cúmplices e competidores e procurar o risco da minha raia, a possibilidade de minha praia.



Helo :

Voce estaria dizendo que optou por um caminho individual?



Armando:

De jeito nenhum. Continuando nesse ar marinho, ou no barco dessa metáfora que você me ofereceu, para esse olhar retrospectivo, descobri o óbvio: que o mar no qual tinha caído não tem raia como qualquer outro – só risco – e para atingir a praia imaginada, sem naufrágio, não me bastava nadar nas mesmas águas dos outros, mas criar, mais com o instinto do que com a razão, a minha própria navegação, não como um lobo-do-mar solitário, mas levando em conta o “coletivo” que nadava ao meu lado, feito, como disse acima, de cúmplices e competidores, isto é, a mão salva-vidas podia, na próxima braçada, ser a mão do “caldo”. Nada a reclamar, nada sem reclamar, pois o regulamento desta competição é este mesmo, e eu, por conseguinte, também era (sou) assim: escrito e escarrado.



Helo:

Qual é sua família poética? Ou sendo mais generosa: quais são as grandes referências poéticas das, pelo menos, 3 gerações que habitaram o período coberto por Máquina de Escrever?



Armando:

A grande referência é a da Semana de Arte Moderna. Da plêiade de poetas que surgiram no momento mais rico, em número e valor, que a poesia brasileira teve, só comparável, em qualidade, talvez, aos poetas da fase colonial. O diálogo consciente ou inconsciente, de adesão ou de repulsa, foi muito produtivo e tem alta definição de caminhos e desvios. A minha família, embora o poeta tenha que sair dela, como em sua vida pessoal, para se afirmar, renegando-a um pouco, batendo boca mesmo, depois de muito roubo escondido e apropriação declarada, começa, para só falar em termos poéticos brasileiros – e sumariamente – com Cláudio Manuel, Castro Alves, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos, Manuel Bandeira, Murilo Mendes, João Cabral e Ferreira Gullar. E Drummond ? Eu estava falando de ilustres, mas simples mortais: Drummond é Deus.





Helo:

Como você situa a produção de poesia brasileira desse período num contexto internacional?



Armando:

Para só ficarmos no modernismo que ao nos atualizar apurou nossa qualidade, ainda assim ele chegou tarde nestas paragens, como costuma acontecer. Nossa literatura, como diz Antonio Candido, “ é pobre e fraca. Mas é ela, não outra, que nos exprime. Se não for amada, não revelará sua mensagem; e se não a amarmos, ninguém a fará por nós. Se não lermos as obras que a compõem, ninguém as tomará do esquecimento, descaso ou incompreensão”. Descaso e incompreensão que fazem com que no estrangeiro, hoje, a situação se inverta, ao menos, topicamente: eles estão começando a ler Machado com cem anos de atraso. Quantos anos será preciso para lerem, verdadeiramente, Bandeira, Drummond, Cabral, Graciliano, Clarice e Rosa, por exemplo ? Verdadeiramente, aqui, significa, ler, com a naturalidade que lêem, por exemplo, Borges e Garcia Marques ? Com a naturalidade que lêem Paulo Coelho, que, por sinal, não tem nada a ver com literatura ? As três gerações, portanto, que você menciona, ainda têm muito o que esperar para conseguirem recepção condigna. Mesmo que essa recepção não precise ser, rigorosamente, cronológica. Pode ser salteada, graças, contudo, à força dos que nos antecederam. O problema, agora, querendo ser otimista, não é de excelência: temos verbo, não temos verba, peso histórico e político para que a nossa cultura literária chegue ou atravesse como um todo o Atlântico, além de escrevermos numa língua, que por todas esses motivos, se enfraqueceu, e tem de enfrentar, as vagas, cada vez maiores, de leitores do espanhol e do inglês.



Helo: Qual foi o saldo de sua passagem pelas vanguardas ? A gente sente a presença de um DNA de rigor e experimentalismo mesmo quando você o renega 3 vezes. Fale um pouco sobre esta experiência que me parece ter sido bastante formativa de sua linguagem



Armando: Quem me sugeriu a Práxis foi o José Guilherme Merquior, responsável pela publicação de Palavra (1963), meu primeiro livro. Os originais tinham viajado de Cleonice Berardinelli para Manuel Bandeira para serem avaliados. Cleo achou que Bandeira poderia dar uma opinião mais precisa, e este que recebeu meu pai e a mim no apartamento do Castelo, em 18 de agosto de 1963, numa tarde memorável para o poeta mocíssimo e mudo que se apoiava num pai amorável e causer exímio. Bandeira depois de comentar favoravelmente o projeto de livro recomendou que eu ouvisse dois contemporâneos estritos: Gullar ou Zé Guilherme. Preferi o segundo, porque tinha um pouco de medo do primeiro, o poeta de vanguarda melhor, mais visceral e sincero, pois eu o lia, copiava a mão sua poesia admirável desde 1956, e é conveniente não se aproximar muito de quem se admira tanto para não ser consumido ou se decepcionar. O Zé, então, furão que era, me arranjou a gráfica Borsói, via Fernando Sabino, que lá fazia os livros da Editora do Autor. Quando o livro ficou pronto ele me disse: estou colaborando numa revista chamada Práxis que considero a melhor dessas todas; mande seu livro para o Mario Chamie, poeta, e seu diretor. Como ficou claro, meu poeta de vanguarda era e sempre foi o Gullar e a Instauração Práxis, dos vanguardismos estabelecidos foi aquele que me pareceu mais próximo do que tentava fazer, pois não abolia o discurso, era mais eclética, e tinha um forte acento político. Minha dicção “praxista” pode ser lida e ouvida nos dois livros que se seguiram a Palavra: Dual (1966) e Marca registrada (1970). A partir de De corpo presente (1975) ela vai se metabolizando, ganhando uma marca mais pessoal, como em todos os poetas do grupo. Não me lembro de ter renegado três vezes meu período de experimentalismo. Se o fiz foi de maneira impensada, já que ele foi fundamental para eu encontrar minha voz, minha identidade. Considero que meus três primeiros livros são de formação e exercício; De corpo presente é meu livro de transição. A partir de 1979, com À mão livre entro na fase de consolidação que não tem data para acabar, ou se tiver, é fúnebre.



Helo :

Hoje a gente vê uma certa pacificação da belicosidade das vanguardas e uma aproximação mais tranquila das novas gerações com a “velha vanguarda”. Isso é verdade? É positivo?



Armando:

É verdade e é positivo. É verdade pois não faz parte do tempo deles aquela brigalhada. Alguns – e não são os melhores – ainda tentam repetir os velhos anátemas. Se não são clowns são clones enferrujados. E é positivo porque o distanciamento proporciona uma visão mais ponderada, mais crítica de tudo aquilo. Mas só permanecerá positivo se houver uma “antropofagia” para valer e não um aproveitamento de butique, de quem só belisca, melhor dizendo.



Helo:

Outro ponto que eu gostaria de investigar é sobre outro saldo: aquele do engajamento político e estético, marca da geração 60. Isso continua definindo uma diferença muito grande entre os poetas que vieram dos anos rebeldes e os das gerações que se seguiram?



Armando:

Acho que a diferença é mais de atitude ou comportamento. Os “marginais” abriram mão do palanque, até mesmo porque ele estava vetado por forças maiores e vieram com o desbunde, arma política eficiente, carregada de desdém, deboche, desobediência civil. Os poetas dos ’90 trocaram a militância e o protesto “encomendados”, pela vivência, pela visibilidade. Resumindo, curto e grosso, aqui no Rio, pelo menos: se nos idos dos ’60 os da Zona Sul como que “falavam” pelos da Zona Norte, hoje, esse últimos não precisam de porta-vozes, para dizer o mínimo.



Helo :

Fala-se muito da poesia de mulheres, entretanto um traço que muitas vezes passa desapercebido em sua produção é seu olhar comprometido com o que seria um “universo masculino” típico, ou como voce mesmo nomeou num dos títulos de sua obra, com uma “cabeça de homem”. O que seria isso? E por que essa explicitação é rara nos poetas e ficcionistas-homens? Você se definiria como um poeta “masculino” aquele que se dintingue, por opção, de uma poesia “feminina”?



Armando:

Norma Pereira Rego, de saudosa memória, me disse um dia: não conheço poesia mais masculina do que a sua. Seguramente, não é a mais, mas é uma delas. Se minha libido se alimenta da diferença dos gêneros na minha vida, nada mais natural que meu poema reflita essa condição. Há coisas que só um homem pode escrever, como há outras, que só uma mulher. Não sei dizer porque os meus confrades raramente explicitam isso, como diz; só sei, que o feminismo para mim, me fez ver que mulher não é um outro sexo: é uma outra raça. Acredito e pratico, portanto, a guerra conjugal, sempre que necessário.



Helo:

E o que é que homem pode dizer e mulher não pode dizer?



Armando:

O homem pode pensar em mulher, mas não do jeito que ela gostaria que pensasse. Penso mais: como la dona é móbile, quando a gente pensa nela, pensa meio fora do lugar, pois ela não está ali onde a gente pensava (ou gostaria) que estivesse. Estaria aonde, então ? Como a carta roubada de Poe, bem à vista, no lugar próprio para cartas e mulheres: enigmática, fechada, embora de batom. O que a mulher não pode pensar é no que o homem pensa, verdadeiramente, sobre ela. O problema começa e acaba aí: porque ela pensa justamente sobre isso. Concluindo esse pensamento: o mundo é masculino, ainda.


Helo : Lembro agora de um outro título seu, o Longa Vida. Poesia é medo da morte? Como a sua poesia madura e a dos nossos poetas em geral têm metabolizado essa ansiedade “básica”?



Armando:

Amor e morte são os grandes temas da arte e da literatura. Shakespeare é amor e morte, full time. Falando por mim (que os outros falem por eles) falo com as palavras que Maria Rita Kehl, ao resenhar Cabeça de homem: “A poesia de Armando incita uma velocidade por dentro e por fora do corpo. Claro, essa velocidade conhece a força que vem vindo atrás dela, implacável. Escrever, como Montaigne, é escrever contra a morte – ou não é nada”. Que assim seja. Mas, pensando bem, a “indesejada das gentes” é cheia de manha e de ardil: ela não está atrás de nós, está na frente.


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Heloisa Buarque de Hollanda



ARMANDO Freitas Filho, que neste fevereiro último comemorou seus 43 anos de vida e 20 de poesia, relatou recentemente a um razoável público no auditório da OLAC, sua forma de trabalhar: escreve de pé, frente à mesa, inclinando-se sobre o papel, ou seja, na medida do possível, em posição de sentido.

No trato social, seu grande charme é um sotaque adoravelmente sincopado, um certo “embaraço fônico”. Ou seja, alguma prudência, hesitação, no que diz respeito ao abandono emocional.

No afetivo, uma enorme fidelidade dissimulada por enérgicas representações, regras, compassos e manias (entre as quais, seu copo diário de Longa Vida CCPL 2000, o leite).

No literário, nos dá a dica:

“Esta mão que me escreve
há tanto
e tenta
dizer o que a outra
cala, não consente
segurando
o sonho
a caravela, o delírio
o incrível Hulk
que pode rebentar as costuras
os costumes
que pode
incendiar a casa
o próprio corpo
e avançar
pelo espelho adentro
contra si mesmo.”

O que identifica a longa vida e obra de Armando é, exatamente, o partido que tira deste estado de alerta, ou mais precisamente, da recusa às “facilidades”da emoção e da escrita. Em seu texto não se observa — salvo em raros momentos — aquela opção pela poesia instantânea, informalmente pessoalizada, anotada, diretamente “psicografada” do dia-a-dia que marcou a poesia brasileira recente. Entretanto, a leitura de Longa vida indica uma extrema contemporaneidade com os novos poetas: o jogo, o provérbio, o ready-made, o erotismo escancarado, a sensibilidade política, a vida como o grande tema — um inegável sabor de época. Acontece que — ainda que afinado com as questões e com o sentimento da geração 60/70 — nosso poeta escreve “só/ em último caso/ ou como quem alcança/ o último carro”.

Na apresentação de Longa vida, companheira de viagem, Ana Cristina Cesar (a misteriosa e excelente poeta de A teus pés, hit merecido da poesia 80) tenta decifrar a trama do texto (e talvez da longa vida) de Armando: “Há sempre uma dose dupla sobre a lareira, sob a vista. Há sempre uma tensão entre o vôo livre e a gaiola das loucas, entre um nômade e um sedentário, entre uma mulher que parte de avião e um homem que fica no aeroporto, entre a mesa burocrática e o impulso incendiário, entre o poema superloquaz, perito nas palavras, seus jogos, saltos mortais, e o hemisfério silencioso dos sentidos, entre o “deslizante verso discursivo” e a “lucidez dos sobressaltos” de que fala João Cabral”.

Tratando de dualidade, tentando distinguir e resolver onde a paixão/onde o texto, quando a poesia/quando a vida, o poeta não abre mão de sua marca registrada: um compromisso jurado e sacramentado (ainda que altamente emocionado) com o rigor no trato com a palavra.

Sua longa viagem poética prova e comprova esta determinação. Como não poderia deixar de ser, seu primeiro livro, de 1963, chamou-se Palavra. Tanto Palavra quanto Dual (1966), ligados à vanguarda Praxis, refletem um momento (não diria um resultado) quase que de “exercícios de escrita”, a palavra como um campo experimental rigoroso, muitas vezes de certa forma aprisionador, mas que lhe trouxe como dividendo o inegável know-how do poeta com seu instrumento. Em seguida, publica Marca registrada (1970) onde a preocupação explícita com o momento político traz-lhe alguns problemas “inevitáveis e concretos” e denuncia já um certo olhar voltado para fora, como que um reconhecimento de terreno. Munildo de um evidente domínio do texto, Armando permite-se, então, falar abertamente de si: seguem-se De corpo presente, Mlle. Furta Cor, À flor da pele (estes dois últimos experimentando com Rubem Guerschman e Roberto Maia as possíveis articulações da imagem com o texto poético), À mão livre. Entretanto, sempre atento, adverte:

“À mão livre
mas não tanto
pois escrevo
para não voar
enquanto a loucura
descabelada
por todos os ventos
sobre a escada
perde o pé
e range
dentes e degraus
enquanto escrevo
pelos ares.”

Se a questão da poesia é central em seu trabalho (”quem escreve sempre alcança/ a quem? o quê?”) a questão das viagens “viagens hors texte”não é menos complexa. Trabalhando a fundo as trilhas de seu percurso “sem carro próprio/ sob nome falso”, Longa vida, modulado como um inventário, desfia memórias (relutantes), enigmas de bares e verões em verde-amarelo, impressões de amor e morte “à tona, à toa, na vida anônima”. Fala ainda de um personagem que teme a memória (”Caço/ o que se despede:/ e não deixa nenhum sinal/ pista ou vestígio”) , que teme seu narrador (”armando suas falcratuas/ um eu que é um pseudo/ um índice onomástico/ um mar ou uma/ máscara/ a próxima cara”).

Uma observação inadiável que a leitura de Longa vida sugere: Armando escreve bem. Qualidade que vem se tornando cada vez mais rara nestes últimos tempos de proliferação indiscriminada de poetas. É seguramente esta qualidade que lhe autoriza a resgatar — no melhor estilo 80 — o desejo de ver “a vida voando/ lá fora/ em versos livres/ e brancos”.

Longa vida surpreende exatamente enquanto parece promover o cruzamento entre a preocupação formal e a “escrita da paixão”que caracterizou a poesia jovem da última década. Assim como Marca registrada parecia empenhado em promover o cruzamento entre o experimentalismo de vanguarda e com a preocupação social dos anos 60.

Sem dúvida uma longa vida bem vivida (”Valium, valei-me/ pois aos quarenta/ eu não sei se eu sou eu/ ou se eu sou ou”) a do velho Armando que insiste, entretanto, em não perder de vista os labirintos e os disfarces do poeta fingidor.



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AMAR | armando freitas filho
para cri



Amar
é mergulhar de cabeça
sem saber nadar
sem saber de nada
ao seu encalço
numa piscina
como uma camicase
pulando do último
do mais alto trampolim
de mim
_______________sem asa-delta
salva-vidas, pára-quedas
sem perguntar
sem sequer pensar
se lá embaixo
vou encontrar água
ou o ladrilho do vazio?

Amar
é ter que inventar
mãos tão macias e cuidadosas
como nenhum Nívea
jamais ousou fazer
para melhor pegar
como quem pega, no céu
sem rasgar
______________o corpo de uma nuvem
seu vôo de papel de seda
______________sem slow/snow motion
ou ainda alcançar
e reter
______________entre os dedos
a fuga do perfume
do seu sonho
solto em minha fronha?



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SOBRE PEDRA
Escrevo contra, e incompreensível
em pé, direto na parede
sem horizonte à mão, pois não porto
a necessária talhadeira de legendas
indeléveis, nem o ranho, o catarro preto
do piche que impõe sua mancha de gordura
mas o ligeiro spray lavável e ilegível
que não suja fundo o futuro dos muros
que não entranha, não dói, e até decora
a cara fechada (descascada) da cantaria.

Armando Freitas Filho

Do livro: "Duplo cego", Nova Fronteira, 1997, RJ


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Antologia homenageia o poeta Armando Freitas Filho



EUCLIDES SANTOS MENDES
DE SÃO PAULO

A obra "Melhores Poemas" (Global Editora, 192 págs., R$ 29) cobre a produção de Armando Freitas Filho desde 1963 --quando publicou "Palavra", seu primeiro livro. Inclui também poemas inéditos, como "Para este papel", cuja primeira estrofe diz: "Escrito neste papel onírico/ feito de vestígios de nuvem/ o poema procura não pesar/ nem ferir o sono da folha debaixo./ Prefere que transpareça o sonho/ a magia que animou a mão/ e a elevou, até tocar o céu".

Leia, a seguir, entrevista com a organizadora da antologia, a crítica literária e professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro Heloisa Buarque de Hollanda.

Como foi a seleção dos poemas?

Não teve critérios objetivos. Conheço de cor a obra de Armando Freitas Filho e simplesmente escolhi meus poemas prediletos.

Qual a importância das antologias para a poesia contemporânea?

Antigamente, as antologias eram importantes porque divulgavam a obra de poetas novos ou organizavam os clássicos para o leitor. Hoje, com a internet, a divulgação dos novos é feita de forma diferente e interessante. Através dos blogs, criando interlocução entre pares, entre autores da mesma geração, o que reconfigura um pouco a vida literária atual. Acho que hoje restou o lado didático e o lado autoral do antologista. Porque uma das minhas poucas certezas é a de que fazer uma antologia é um gesto crítico.

Por que Freitas Filho não estava na antologia "26 Poetas Hoje", organizada pela sra. em 1976?

Na realidade, talvez eu não tivesse olho crítico suficiente para perceber que Armando não se encaixa em tendências. Ele nasceu clássico. E, como era muito ligado à sua época, poderia, com a maior propriedade, ter sido incluído. Falha minha.

O que faz a poesia de Armando Freitas Filho ser "aguda, trabalhada, nervosa", como a sra. mesma a qualifica no prefácio da antologia?

Quem acompanha o seu processo de criação vai ver como o artesanato poético é prioridade para a sua poética. O trabalho com a palavra, a reescrita, o corte e a precisão dão à sua obra uma energia própria difícil de ser encontrada na poesia contemporânea.

Qual o lugar de Freitas Filho na poesia brasileira hoje?

Acho que, junto com Ferreira Gullar, ele é um dos maiores nomes da poesia contemporânea.


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