A questão de saber se a metafísica deva ou não ser considerada como exausta e morta, escapa, sem dúvida, se não completamente ao programa, pelo menos aos limites desta pequena folha.
Pedimos, todavia, respeitosamente, ao público a permissão de apresentá-la ao círculo de nossos leitores e contribuir com algum esforço para a sua solução.
Antes de mais nada, merece reparo como os espíritos em nosso país se portam no que diz respeito a semelhante indagação. O que melhor e mais acertado se pode afirmar no assunto é que o ponto de vista filosófico do nosso pretenso mundo científico é caduco e sem o mínimo préstimo. Não resta a mais leve dúvida que até as estrelas de primeira grandeza, os mais afamados pensadores e escritores da terra se distinguem pela sua fé implícita no velho Deus da teologia e da Igreja. Nada sabem de sério do desenvolvimento da vida intelectual do tempo presente e ousam falar de tudo, de filosofia, de religião, de ciência, e do que falam fazem grande alarde.
Uma coisa, porém, urge observar e é que com essa enorme ignorância correm emparelhados o orgulho e o desprezo pelos mais notáveis feitos científicos estrangeiros, notadamente alemães.
É isto suficiente para caracterizar, de um lado a deplorável condição em que nos achamos, e por outro, justificar o interesse que tomamos em responder à pergunta proposta. Se em nossos dias nenhum homem verdadeiramente culto deve ignorar que o dogmatismo da metafísica moderna foi abalado por Hume, cuja implacável crítica coube a Kant concluir em mais largas proporções e com mais considerável profundeza, há de causar admiração e grande espanto que tão triviais verdades ainda despertam entre nós.
Certo, antes que Augusto Comte, o fundador do positivismo na França, expelisse o absoluto para a região das quimeras, já Hume havia derrocado o edifício metafísico (... ) Foi, em verdade, a dúvida do genial filósofo escocês acerca da validade dos juízos sintéticos em geral, que veio a se tornar o estímulo e a fonte das profundas pesquisas de Kant; e este mesmo declarara, sem rebuço, que a crítica de Hume é que primeiro o despertara de seu sono dogmático. São, com efeito, profundamente penetrantes as fortes palavras, como que talhadas em mármore, com que o terrível céptico inglês fechou seu Ensaio sobre o Espírito Humano. Ele diz: - "Quando, convictos da doutrina aqui ensinada, penetramos numa biblioteca, que destruição devemos causar? Tomemos um livro de teologia ou de metafísica e perguntemos: contém investigações sobre grandezas e números? Não. Contém o resultado de experiências acerca de fatos e realidades existentes? Não. Jogue-se então o livro ao fogo, porque não poderá conter nada além de sofisticarias e mistificações". - Profunda e belamente dito.
Desde o momento em que semelhantes verdades foram impunemente pronunciadas, a metafísica deixou de poder ser considerada como pertencente ao grupo das ciências, quer quando fala do supersensível ou da essência das coisas, quer quando se pronuncia racionalmente sobre a substância da alma, a origem do mundo, a existência e os atributos da Divindade.
Toda a filosofia até o aparecimento de Kant, como ensina Schopenhauer, não passou de um sonho estéril de falsidade e servilismo intelectual, do qual os novos tempos só se libertaram pelo grado partido da Crítica da Razão Pura.
E cremos não estar em erro, proferindo a crença de que não teria Kant atingido o seu desenvolvimento, se não fora o influxo de Hume.
Distinguem-se no período pré-crítico do sistema kantesco dois estádios: no primeiro, esteve o grande filósofo sob o influxo da filosofia escolástica alemã; no segundo, sob a influência céptica. Foram principalmente Wolf, Locke e Hume que indicaram os marcos capitais por onde Kant teve de passar antes de descobrir os seus próprios.
Destarte, se reuniram nele todas as energias e esforços de seus predecessores. A parte de Hume tinha de ser a mais considerável e duradoura. Somente depois do genial escocês poderia vir um Kant: a estrada estava aberta, mas só ele a poderia verdadeiramente alargar.
II
A máxima de que as investigações metafísicas são estéreis em resultados e de que é perda completa de tempo ocupar o espírito com elas, está em favor entre numerosas pessoas que se gabam de possuir o senso comum, e nós ouvimo-la às vezes enunciar por autoridades eminentes, como se sua conseqüência lógica, a supressão desse gênero de estudos, tivesse a força de uma obrigação moral.
Neste caso, contudo, com noutros análogos, aqueles que promulgam as leis parecem esquecer que um legislador prudente deve tomar em consideração não só se o que ordena é coisa que se deva desejar, como ainda se é possível que se lhe obedeça. Porquanto, se a última questão é resolvida negativamente, não valeria certamente a pena agitar a primeira.
Tal é, efetivamente, a grande força da resposta a dar a todos aqueles que bem quiseram fazer da metafísica um artigo de puro contrabando espiritual. Que seja para desejar, ou não, o impor um direito proibitivo sobre as especulações filosóficas, é absolutamente impossível impedir-lhes a importação no espírito humano. E é assaz curioso notar que aqueles que proclamam com maiores brados abster-se dessas mercadorias são, ao mesmo tempo e em grande escala, consumidores inconscientes de uma ou de outra de suas inúmeras falsificações ou imitações e arremedos. Com a boca cheia de broa grosseira, terrivelmente indigesta, tão de seu gosto, prorrompem em invectivas contra o pão comum. Em verdade, o tentame de alimentar a inteligência humana com um regime estreme de metafísica é pouco mais ou menos tão feliz quanto o de certos pios orientais que pretendiam sustentar o corpo sem destruir vida alguma. Todos conhecem a anedota do micrógrafo sem contemplação que destruiu a paz de espírito de um desses doces fanáticos, mostrando-lhe os animais que pululam numa gota de água com a qual, na cândida inocência de sua alma, ele matava a sede; e o adorador confiante do senso comum pode expor-se a receber um abalo do mesmo gênero quando o vidro de aumento da lógica rigorosa revela os germes, se não as formas já adultas, de postulados essencialmente, fatalmente metafísicos que fervilham entre as idéias mais positivas e até as mais terra-a-terra.
Aconselha-se aí de ordinário ao estudante sério, para o arrancar aos fogos fátuos que brotam dos pântanos da literatura e da teologia, que se refugie no terreno firme das ciências físicas.
Mas o peixe legendário que pulou da frigideira ao fogo, não era mais tolamente aconselhado do que o homem que busca um santuário contra a perseguição metafísica entre as paredes do observatório ou do laboratório. Diz-se que a metafísica deve seu nome ao fato de que, nas obras de Aristóteles, tratam-se das questões da filosofia pura imediatamente depois das da física. Se isto é verdade, esta coincidência simboliza com felicidade as relações essenciais das coisas, porquanto a especulação metafísica segue de tão perto a teoria física quanto os negros cuidados seguem seu cavaleiro.
Basta mencionar as concepções fundamentais e realmente indispensáveis da filosofia natural que tratam dos átomos e das forças, ou as da energia potencial, ou as antinomias de uma vácuo ou não vácuo, para lembrar o fundo metafísico da física e da química, ao passo que, no tocante às ciências biológicas, o caso ainda é mais grave. Que é um indivíduo entre as plantas e os animais inferiores? Os gêneros e as espécies são realidades ou abstrações? Há uma coisa que se chama força vital? Ou este nome denota apenas uma relíquia de velho fetichismo metafísico? A teoria das causas finais é legítima ou ilegítimas? Eis aí alguns dos assuntos metafísicos sugeridos pelo mais elementar estudo dos fatos biológicos.
Não é tudo: pode-se dizer, sem medo de errar, que as raízes de cada sistema de metafísica repousam no fundo dos fatos da fisiologia. Ninguém pode contestar que os órgãos e as funções da sensação sejam tanto da esfera do fisiologista quanto o são os órgãos e funções do movimento, ou os da digestão; e, todavia, é impossível adquirir até o conhecimento dos rudimentos da fisiologia da sensação sem ser levado diretamente a um dos mais fundamentais de todos os problemas metafísicos. Com efeito, as operações sensitivas têm sido desde tempos imemoriais o campo de batalha dos filósofos.
(Ensaios e Estudos de Filosofia e Crítica - 1875)
III
RELATIVIDADE DE TODO CONHECIMENTO
(1885)
A primeira proposição do programa pretende estabelecer como verdade a relatividade dos conhecimentos humanos.
Parece à primeira vista que nenhuma dúvida se pode levantar sobre tal produto. Desacreditada a pretensiosa ontologia metafísica e quase reduzida a proporções de velha mitologia, que tem perdido o seu primitivo encanto poético, é explicável que a idéia da relatividade de todo o saber humano viesse substituir o antigo prejuízo dos princípios absolutos e absolutas verdades.
Mas é mister que nos entendamos e tratemos logo de prevenir-nos contra um grande erro, que pode resultar de uma má interpretação do programa.
Ele começa por dizer que os conhecimentos humanos são relativos. Se com isto quis apenas significar que os nossos conhecimentos estão na dependência de certas condições, sem cujo preenchimento eles não podem ser completos, e porque tais condições nunca serão perfeitamente preenchidas, também eles nunca estarão no caso de se chamarem perfeitos, se esta é a idéia visada pelo programa, nenhuma contestação.
Não é crível, porém, que a isto se quisesse restringir a proposição mencionada.
A idéia da relatividade de todo o saber não é uma idéia nova; pelo contrário é quase tão velha como a filosofia. Entretanto, neste século, e mesmo em nossos dias, ela parece ter tomado um caráter novo. Pelo menos é certo que filósofos notáveis não se têm dedignado de consumir, por amor dela, muito papel e muita tinta, pôsto que nenhum proveito sensível nos tenha advindo de semelhante gasto.
É na Inglaterra principalmente, que, nos últimos tempos, a teoria da relatividade do saber tem sido professada e discutida com particular predileção. Quem primeiro ali apresentou-a com uma certa insistência (refiro-me aos tempos atuais) foi Hamilton, que aliás não teve coragem de sustentá-la em todas as suas conseqüências.
Na obra de Stuart Mill sobre a filosofia de Hamilton há dois capítulos (II e III) consagrados à elucidação desta doutrina.
Sobretudo interessante é o capítulo II, porque nele vêm expostas concisa e claramente todas as diversas nuanças da teoria em questão.
Porém é de supor que este distinto pensador, a despeito de sua grande sagacidade, deixou despercebido um ponto essencial na afirmação da relatividade dos nossos conhecimentos.
Mill opina que essa relatividade consiste no fato de que nós só podemos conhecer as nossas próprias afecções e nossos estados íntimos. Por isso, para ele, os extremos relativistas são aqueles que afirmam que nós não só nada conhecemos dos nossos próprios estados, como também que nada mais temos, nada mais há a conhecer.
Mas isto envolve um engano. Com a relatividade do saber admite-se um elemento de inverdade, de imperfeita validade objetiva.
Afirmar que os nossos conhecimentos são relativos só tem sentido sob o pressuposto de que as coisas em si não são tais, quais são para nós, e que só podemo-las conhecer tais quais elas nos aparecem.
Negando-se esta distinção, todo o saber é decerto relativo a nós, mas esta relatividade não implica então nenhuma inverdade dos conhecimentos, nenhuma limitação da sua validade.
O saber seria então absolutamente verdadeiro. Mas quando se diz que os conhecimentos humanos são relativos, o que se quer afirmar é justamente o contrário daquilo, é que absolutamente verdadeiro não é o nosso saber.
Esta teoria da relatividade formou-se em oposição à consciência comum, e este ponto não deve ficar esquecido.
O homem, que não reflete, crê: 10, que ele conhece as coisas exatamente como elas são em si; 20 , que estas coisas existem justamente como são conhecidas, independentes do conhecimento; são objetos em si, absolutos, sem relação a nós.
Foi a inconciliabilidade destas duas asserções que provocou os primeiros escrúpulos cépticos.
Já na Grécia, Protágoras dissera que o homem é a medida de todas as coisas, das que são, como elas são, das que não são, como elas não são; e por este modo levou a doutrina da relatividade aos seus extremos limites.
Porém é de notar que quando assim se leva tão longe esta teoria, ela converte-se no seu contrário e dá aos nossos conhecimentos uma validade e verdade ilimitadas, que de todo se opõem nos fatos.
A tese de Protágoras implica necessariamente que os objetos cognoscíveis não se distinguem do conhecimento que temos deles, pois que a não ser assim, o sujeito cognoscente não poderia ser medida de tudo, se o conhecimento e seu objeto não são duas, mas uma só coisa, então não se pode mais falar de relatividade. Uma relação, se esta palavra tem um sentido, não é concebível sem duas coisas, entre as quais a relação exista, e sem relação, naturalmente, não é possível relatividade alguma.
Os relativistas modernos aproximam-se de Protágoras. Porém nós acabamos de ver onde pára o protagorismo.
A doutrina da relatividade só tem senso racional, nas duas seguintes hipóteses: 1ª, que os objetos cognoscíveis são determinados pela própria natureza do sujeito cognoscente; 2ª, que eles, justamente por causa desta sua relatividade, não representam a verdadeira, absoluta essência da realidade.
Que se deve entender, quando se diz que os objetos cognoscíveis são relativos ao sujeito, estão em necessária relação com ele? Somente isto: que na essência dos mesmos objetos há alguma coisa que os prende ao sujeito, uma originária adaptação daqueles às leis deste.
A relatividade do saber encerra dois momentos, diz A. Spir: primeiramente, o conhecimento dos objetos, dados como coisas externas no espaço, só é valioso com relação ao ponto de vista da consciência comum, mas objetivamente, ou em si, inexato, não verdadeiro. Conforme a expressão de Kant, as coisas têm no espaço só uma realidade empírica, nenhuma realidade transcendental. Em segundo lugar, os objetos empíricos são simples fenômenos, não apresentam a realidade em sua essência originária, absoluta, porém na forma estranha da pluralidade da mudança e da antítese ou dualidade de sujeito e objeto de conhecimento.
E eis aí o que se pode dizer em nome da filosofia ainda que em ligeiros traços a respeito da afirmação que os nossos conhecimentos são relativos.
Entretanto, dou-me pressa em confessar que a questão da relatividade, assim concebida, e só é que regularmente deve sê-lo, não tem muito cabimento na ciência, de que nos ocupamos. Mal se descobre a ligação que possa haver entre esta tese e as demais que lhe sucedem no encadeamento lógico do sistema.
Para ter alguma razão-de-ser é mister considerá-la no sentido de limitação. Todos os nossos conhecimentos são limitados. E dois são estes limites, diz Dubois Reymond: um consiste em que nós não podemos saber o que é força e matéria; o outro em que não podemos saber, como dos átomos e seu movimento pode nascer uma sensação...
- Inst. Nac. Livro/MEC - 1996
GLOSAS HETERODOXAS A UM DOS MOTES DO DIA, OU VARIAÇÕES ANTI-SOCIOLÓGICAS
(concluído em 1887)
Nur durch die innigste Wechselwirkung und gegensitige Durch-dringung von Philosophie und Empirie entsteht das unerschuetterliche Gebaeude der Wahren, monistischen Wissenschaft *
E. HAECKEL.
I
Eu não creio na existência de uma ciência social. A despeito de todas as frases retóricas e protestos em contrário, insisto na minha velha tese: - a sociologia é apenas o nome de uma aspiração tão elevada, quão pouco realizável.
Além deste caráter de simples postulado do coração, que vê ou quisera ver na sociedade humana um todo orgânico, subordinado, como os demais organismos, a certas e determinadas leis, a palavra não tem outro sentido, que mereça ser investigado.
Logo em princípio, salta aos olhos que o estudo dos fenômenos sociais, considerados em sua totalidade e reduzidos à unidade lógica de um sistema científico, daria em resultado uma estupenda pantosofia, evidentemente incompatível com as forças do espírito humano.
Se nem mesmo como ciência descritiva, que aliás envolve, na opinião de Haeckel, uma contradictio in adjecto, a ciência social é construtível, pois que não podem ser descritos, todos os fenômenos da sua alçada, por que razão sê-lo-ia como ciência de princípios, como ciência de leis, que têm de ser induzidas da observação desses mesmos fatos?
Desconheço uma tal razão. Entretanto, não se suponha que eu tenha jurado aos meus deuses fazer guerra à sociologia.
Tobias Barreto
IGNORABIMUS
Quanta ilusão!... O céu mostra-se esquivo E surdo ao brado do universo inteiro... De dúvidas cruéis prisioneiro, Tomba por terra o pensamento altivo. Dizem que o Cristo, filho de Deus vivo, A quem chamam também Deus verdadeiro, Veio o mundo remir do cativeiro, E eu vejo o mundo ainda tão cativo! Se os reis são sempre os reis, se o povo ignavo Não deixou de provar o duro freio Da tirania, e da miséria o travo, Se é sempre o mesmo engodo e falso enleio, Se o homem chora e continua escravo, De que foi que Jesus salvar-nos veio? (1880)
O Gênio da Humanidade
Sou eu quem assiste às lutas, Que dentro d´alma se dão, Quem sonda todas as grutas Profundas do coração: Quis ver dos céus o segredo; Rebelde, sobre um rochedo Cravado, fui Prometeu; Tive sede do infinito, Gênio, feliz ou maldito, A Humanidade sou eu.
Ergo o braço, aceno aos ares, E o céu se azulando vai; Estendo a mão sobre os mares, E os mares dizem: passai!... Satisfazendo ao anelo Do bom, do grande e do belo, Todas as formas tomei: Com Homero fui poeta, Com Isaías profeta, Com Alexandre fui rei.
Ouvi-me: venho de longe, Sou guerreiro e sou pastor; As minhas barbas de monge Têm seis mil anos de dor: Entrei por todas as portas Das grandes cidades mortas, Aos bafos do meu corcel, E ainda sinto os ressábios Dos beijos que dei nos lábios Da prostituta Babel.
E vi Pentapólis nua, Que não corava de mim, Dizendo ao sol: eu sou tua, Beija-me... Queima-me assim! E dentro havia risadas De cinco irmãs abraçadas Em voluptuoso furor... Ânsias de febre e loucura, Chiando em polpas de alvura, Lábios em brasas de amor!...
Travei-me em lutas imensas, Por vezes, cansado e nu, Gritei ao céu: em que pensas? Ao mar: de que choras tu? Caminho... e tudo que faço Derramo sobre o regaço Da história, que é minha irmã: Chamem-me Byron ou Goethe, Na fronte do meu ginete Brilha a estrela da manhã.
E no meu canto solene Vibra a ira do Senhor: Na vida, nesse perene Crepúsculo interior, O ímpio diz: anoitece! O justo diz: amanhece! Vão ambos na sua fé... E às tempestades que abalam As crenças d´alma, que estalam, Só eu resisto de pé!...
De Deus ao imenso ouvido A Humanidade é um tropel, E a natureza um ruído Das abelhas com seu mel, Das flores com seu orvalho, Dos moços com seu trabalho De santa e nobre ambição, De pensamentos que voam, De gritos d´alma, que ecoam No fundo do coração!...
A Escravidão
Se Deus é quem deixa o mundo Sob o peso que o oprime, Se ele consente esse crime, Que se chama escravidão, Para fazer homens livres, Para arrancá-los do abismo, Existe um patriotismo Maior que a religião.
Se não lhe importa o escravo Que a seus pés queixas deponha, Cobrindo assim de vergonha A face dos anjos seus Em seu delírio inefável, Praticando a caridade, Nesta hora a mocidade Corrige o erro de Deus!...
Que Mimo
Tu és morena e sublime, Como a hora do sol posto. E, no crepúsculo eterno Que te envolve o lindo rosto, O céu desfolha canduras De alvoradas e jasmins, E passam roçando n´alma As asas dos querubins...
Teu corpo que tem o cheiro De cem capelas de rosas, Que t´enche a roupa de quebros, De ondulações graciosas, Teu corpo derrama essências Como uma campina em flor: Beijá-lo!... fôra loucura; Gozá-lo!... morrer de amor...
Amar
Amar é fazer o ninho, Que duas almas contém, Ter medo de estar sozinho, Dizer com lágrimas: vem, Flor, querida, noiva, esposa... Cabemos na mesma lousa... Julieta, eu seu Romeu: Correr, gritar: onde vamos? Que luz! que cheiro! onde estamos? E ouvir uma voz: no céu!
Vagar em campos floridos Que a terra mesma não tem; Chegamos loucos, perdidos Onde não chega ninguém... E, ao pé de correntes calmas, Que espelham virentes palmas, Dizer-te: senta-te aqui; E além, na margem sombria, Ver uma corça bravia, Pasmada olhando pra ti!
Mnezarete, a divina, a pálida Frinéia, Comparece ante a austera e rígida assembléia Do Areópago supremo. A Grécia inteira admira Aquela formosura original, que inspira E dá vida ao genial cinzel de Praxíteles, De Hiperides à voz e à palheta de Apeles.
Quando os vinhos, na orgia, os convivas exaltam E das roupas, enfim, livres os corpos saltam, Nenhuma hetera sabe a primorosa taça, Transbordante de Cós, erguer com maior graça, Nem mostrar, a sorrir, com mais gentil meneio, Mais formoso quadril, nem mais nevado seio.
Estremecem no altar, ao contemplá-la, os deuses, Nua, entre aclamações, nos festivais de Elêusis... Basta um rápido olhar provocante e lascivo: Quem na fronte o sentiu curva a fronte, cativo... Nada iguala o poder de suas mios pequenas: Basta um gesto, - e a seus pés roja-se humilde Atenas... Vai ser julgada. Um véu, tornando inda mais bela Sua oculta nudez, mal os encantos vela, Mal a nudez oculta e sensual disfarça. cai-lhe, espáduas abaixo, a cabeleira esparsa... Queda-se a multidão. Ergue-se Eutias. Fala, E incita o tribunal severo a condená-la:
"Elêusis profanou! É falsa e dissoluta, Leva ao lar a cizânia e as famílias enluta! Dos deuses zomba! É ímpia! é má!" (E o pranto ardente Corre nas faces dela, em fios, lentamente...) "Por onde os passos move a corrupção se espraia, E estende-se a discórdia! Heliastes! condenai-a!"
Vacila o tribunal, ouvindo a voz que o doma... Mas, de pronto, entre a turba Hiperides assoma, Defende-lhe a inocência, exclama, exora, pede, Suplica, ordena, exige... O Areópago não cede. "Pois condenai-a agora!" E à ré, que treme, a branca Túnica despedaça, e o véu, que a encobre, arranca...
Pasmam subitamente os juizes deslumbrados, - Leões pelo calmo olhar de um domador curvados: Nua e branca, de pé, patente à luz do dia Todo o corpo ideal, Frinéia aparecia Diante da multidão atônita e surpresa, No triunfo imortal da Carne e da Beleza.
Marinha
Sobre as ondas oscila o batel docemente... Sopra o vento a gemer. Treme enfunada a vela. Na água mansa do mar passam tremulamente Áureos traços de luz, brilhando esparsos nela.
Lá desponta o luar. Tu, palpitante e bela, Canta! Chega-te a mim! Dá-me essa boca ardente! Sobre as ondas oscila o batei docemente... Sopra o vento a gemer. Treme enfunada a vela.
Vagas azuis, parai! Curvo céu transparente, Nuvens de prata, ouvi! - Ouça na altura a estrela, Ouça de baixo o oceano, ouça o luar albente: Ela canta! - e, embalado ao som do canto dela, Sobre as ondas oscila o batel docemente.
Sobre as Bodas de um Sexagenário
Amas. Um novo sol apontou no horizonte, E ofuscou-te a pupila e iluminou-te a fronte...
Lívido, o olhar sem luz, roto o manto, caída Sobre o peito, a tremer, a barba encanecida, Descias, cambaleando, a encosta pedregosa Da velhice. Que mão te ofereceu, piedosa, Um piedoso bordão para amparar teus passos? Quem te estendeu a vida, estendendo-te os braços? Ias desamparado, em sangue os pés, sozinho... E era horrendo o arredor, torvo o espaço, o caminho Sinistro, acidentado... Uivava perto o vento E rodavam bulcões no torvo firmamento. Entrado de terror, a cada passo o rosto Voltavas, perscrutando o caminho transposto, E volvias o olhar: e o olhar alucinado Via de um lado a treva, a treva de outro lado, E assombrosas visões, vultos extraordinários, Desdobrando a correr os trêmulos sudários. E ouvias o rumor de uma enxada, cavando Longe a terra... E paraste exânime.
Foi quando Te pareceu ouvir, pelo caminho escuro, Soar de instante a instante um passo mal seguro Como o teu. E atentando, entre alegria e espanto, Viste que vinha alguém compartindo o teu pranto, Trilhando a mesma estrada horrível que trilhavas, E ensangüentando os pés onde os ensangüentavas. E sorriste. No céu fulgurava uma estrela...
E sentiste falar subitamente, ao vê-la, Teu velho coração dentro do peito, como Desperto muita vez, no derradeiro assomo Da bravura, - sem voz, decrépito, impotente, Trôpego, sem vigor, sem vista, - de repente Riça a juba, e, abalando a solidão noturna, Urra um velho leão numa apartada furna.
Abyssus
Bela e traidora! Beijas e assassinas... Quem te vê não tem forças que te oponha: Ama-te, e dorme no teu seio, e sonha, E, quando acorda, acorda feito em ruínas...
Seduzes, e convidas, e fascinas, Como o abismo que, pérfido, a medonha Fauce apresenta flórida e risonha, Tapetada de rosas e boninas.
O viajor, vendo as flores, fatigado Foge o sol, e, deixando a estrada poenta, Avança incauto... Súbito, esbroado,
Falta-lhe o solo aos pés: recua e corre, Vacila e grita, luta e se ensangüenta, E rola, e tomba, e se espedaça, e morre...
Pantum
Quando passaste, ao declinar do dia, Soava na altura indefinido arpejo: Pálido, o sol do céu se despedia, Enviando à terra o derradeiro beijo.
Soava na altura indefinido arpejo... Cantava perto um pássaro, em segredo; E, enviando à terra o derradeiro beijo, Esbatia-se a luz pelo arvoredo.
Cantava perto um pássaro em segredo; Cortavam fitas de ouro o firmamento... Esbatia-se a luz pelo arvoredo: Caíra a tarde; sossegara o vento.
Cortavam fitas de ouro o firmamento... Quedava imoto o coqueiral tranqüilo... Caíra a tarde. Sossegara o vento. Que mágoa derramada em tudo aquilo!
Quedava imoto o coqueiral tranqüilo. Pisando a areia, que a teus pés falava, (Que mágoa derramada em tudo aquilo!) Vi lá embaixo o teu vulto que passava.
Pisando a areia, que a teus pés falava, Entre as ramadas flóridas seguiste. Vi lá embaixo o teu vulto que passava... Tio distraída! - nem sequer me viste!
Entre as ramadas flóridas seguiste, E eu tinha a vista de teu vulto cheia. Tio distraída! - nem sequer me viste! E eu contava os teus passos sobre a areia.
Eu tinha a vista de teu vulto cheia. E, quando te sumiste ao fim da estrada, Eu contava os teus passos sobre a areia: Vinha a noite a descer, muda e pausada...
E, quando te sumiste ao fim da estrada, Olhou-me do alto uma pequena estrela. Vinha a noite, a descer, muda e pausada, E outras estrelas se acendiam nela.
Olhou-me do alto uma pequena estrela, Abrindo as áureas pálpebras luzentes: E outras estrelas se acendiam nela, Como pequenas lâmpadas trementes.
Abrindo as áureas pálpebras luzentes, Clarearam a extensão dos largos campos; Como pequenas lâmpadas trementes Fosforeavam na relva os pirilampos.
Clarearam a extensão dos largos campos. . Vinha, entre nuvens, o luar nascendo... Fosforeavam na relva os pirilampos... E eu inda estava a tua imagem vendo.
Vinha, entre nuvens, o luar nascendo: A terra toda em derredor dormia... E eu inda estava a tua imagem vendo, Quando passaste ao declinar do dia!
Na Tebaida
Chegas, com os olhos úmidos, tremente A voz, os seios nus, - como a rainha Que ao ermo frio da Tebaida vinha Trazer a tentação do amor ardente.
Luto: porém teu corpo se avizinha Do meu, e o enlaça como uma serpente... Fujo: porém a boca prendes, quente, Cheia de beijos, palpitante, à minha...
Beija mais, que o teu beijo me incendeia! Aperta os braços mais! que eu tenha a morte, Preso nos laços de prisão tão doce!
Aperta os braços mais, - frágil cadeia Que tanta força tem não sendo forte, E prende mais que se de ferro fosse!
Milagre
É nestas noites sossegadas, Em que o luar aponta, e a fina, Móbil e trêmula cortina Rompe das nuvens espalhadas;
Em que no azul espaço, vago, Cindindo o céu, o alado bando, Vai das estrelas caminhando Aves de prata à flor de um lago;
E nestas noites - que, perdida, Louca de amor, minh'alma voa Para teu lado, e te abençoa, Ó minha aurora! ó minha vida!
No horrendo pântano profundo Em que vivemos, és o cisne Que o cruza, sem que a alvura tisne Da asa no limo infecto e imundo.
Anjo exilado das risonhas Regiões sagradas das alturas, Que passas puro, entre as impuras Humanas cóleras medonhas!
Estrela de ouro calma e bela, Que, abrindo a lúcida pupila, Brilhas assim clara e tranqüila Nas torvas nuvens da procela!
Raio de sol dourando a esfera Entre as neblinas deste inverno, E nas regiões do gelo eterno Fazendo rir a primavera!
Lírio de pétalas formosas, Erguendo à luz o níveo seio, Entre estes cardos, e no meio Destas eufórbias venenosas!
Oásis verde no deserto! Pássaro voando descuidado Por sobre um solo ensangüentado E de cadáveres coberto!
Eu que homem sou, eu que a miséria Dos homens tenho, - eu, verme obscuro, Amei-te, flor! e, lodo impuro, Tentei roubar-te a luz sidérea...
Vaidade insana! Amar ao dia A treva horrenda que negreja! Pedir a serpe, que rasteja, Amor à nuvem fugidia!
Insano amor! vaidade insana! Unir num beijo o aroma à peste! Vazar, num jorro, a luz celeste Na escuridão da noite humana!
Mas, ah! quiseste a ponta da asa, Da pluma trêmula de neve Descer a mim, roçar de leve A superfície desta vasa...
E tanto pôde essa piedade, E tanto pôde o amor, que o lodo Agora é céu, é flores todo, E a noite escura é claridade!
Numa Concha
Pudesse eu ser a concha nacarada, Que, entre os corais e as algas, a infinita Mansão do oceano habita, E dorme reclinada No fofo leito das areias de ouro... Fosse eu a concha e, ó pérola marinha! Tu fosses o meu único tesouro, Minha, somente minha!
Ah! com que amor, no ondeante Regaço da água transparente e clara, Com que volúpia, filha, com que anseio Eu as valvas de nácar apertara, Para guardar-te toda palpitante No fundo de meu seio!
Súplica
Falava o sol. Dizia: "Acorda! Que alegria Pelos ridentes céus se espalha agora! Foge a neblina fria. Pede-te a luz do dia, Pedem-te as chamas e o sorrir da aurora!"
Dizia o rio, cheio De amor, abrindo o seio: "Quero abraçar-te as formas primorosas! Vem tu, que embalde veio O sol: somente anseio Por teu corpo, formosa entre as formosas!
Quero-te inteiramente Nua! quero, tremente, Cingir de beijos tuas róseas pomas, Cobrir teu corpo ardente, E na água transparente Guardar teus vivos, sensuais aromas!"
E prosseguia o vento: "Escuta o meu lamento! Vem! não quero a folhagem perfumada; Com a flor não me contento! Mais alto é o meu intento: Quero embalar-te a coma desnastrada!"
Tudo a exigia... Entanto, Alguém, oculto a um canto Do jardim, a chorar, dizia: "Ó bela! Já te não peço tanto: Secara-se o meu pranto Se visse a tua sombra na janela!"
Canção
Dá-me as pétalas de rosa Dessa boca pequenina: Vem com teu riso, formosa! Vem com teu beijo, divina!
Transforma num paraíso O inferno do meu desejo... Formosa, vem com teu riso! Divina, vem com teu beijo!
Oh! tu, que tornas radiosa Minh'alma, que a dor domina, Só com teu riso, formosa, Só com teu beijo, divina!
Tenho frio, e não diviso Luz na treva em que me vejo: Dá-me o clarão do teu riso! Dá-me o fogo do teu beijo!
Rio Abaixo
Treme o rio, a rolar, de vaga em vaga... Quase noite. Ao sabor do curso lento Da água, que as margens em redor alaga, Seguimos. Curva os bambuais o vento.
Vivo há pouco, de púrpura, sangrento, Desmaia agora o ocaso. A noite apaga A derradeira luz do firmamento. Rola o rio, a tremer, de vaga em vaga.
Um silêncio tristíssimo por tudo Se espalha. Mas a lua lentamente Surge na fímbria do horizonte mudo:
E o seu reflexo pálido, embebido Como um gládio de prata na corrente, Rasga o seio do rio adormecido.
Satânia
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Nua, de pé, solto o cabelo às costas, Sorri. Na alcova perfumada e quente, Pela janela, como um rio enorme De áureas ondas tranqüilas e impalpáveis, Profusamente a luz do meio-dia Entra e se espalha palpitante e viva. Entra, parte-se em feixes rutilantes, Aviva as cores das tapeçarias, Doura os espelhos e os cristais inflama. Depois, tremendo, como a arfar, desliza Pelo chão, desenrola-se, e, mais leve, Como uma vaga preguiçosa e lenta, Vem lhe beijar a pequenina ponta Do pequenino pé macio e branco.
Sobe... cinge-lhe a perna longamente; Sobe... - e que volta sensual descreve Para abranger todo o quadril! - prossegue. Lambe-lhe o ventre, abraça-lhe a cintura, Morde-lhe os bicos túmidos dos seios, Corre-lhe a espádua, espia-lhe o recôncavo Da axila, acende-lhe o coral da boca, E antes de se ir perder na escura noite, Na densa noite dos cabelos negros, Pára confusa, a palpitar, diante Da luz mais bela dos seus grandes olhos.
E aos mornos beijos, às carícias ternas Da luz, cerrando levemente os cílios, Satânia os lábios úmidos encurva, E da boca na púrpura sangrenta Abre um curto sorriso de volúpia... Corre-lhe à flor da pele um calefrio; Todo o seu sangue, alvoroçado, o curso Apressa; e os olhos, pela fenda estreita Das abaixadas pálpebras radiando, Turvos, quebrados, lânguidos, contemplam, Fitos no vácuo, uma visão querida...
Talvez ante eles, cintilando ao vivo Fogo do ocaso, o mar se desenrole: Tingem-se as águas de um rubor de sangue, Uma canoa passa... Ao largo oscilam Mastros enormes, sacudindo as flâmulas... E, alva e sonora, a murmurar, a espuma Pelas areias se insinua, o limo Dos grosseiros cascalhos prateando...
Talvez ante eles, rígidas e imóveis, Vicem, abrindo os leques, as palmeiras: Calma em tudo. Nem serpe sorrateira Silva, nem ave inquieta agita as asas. E a terra dorme num torpor, debaixo De um céu de bronze que a comprime e estreita...
Talvez as noites tropicais se estendam Ante eles: infinito firmamento, Milhões de estrelas sobre as crespas águas
De torrentes caudais, que, esbravejando, Entre altas serras surdamente rolam... Ou talvez, em países apartados, Fitem seus olhos uma cena antiga: Tarde de Outono. Uma tristeza imensa Por tudo. A um lado, à sombra deleitosa Das tamareiras, meio adormecido,
Fuma um árabe. A fonte rumoreja Perto. À cabeça o cântaro repleto, Com as mãos morenas suspendendo a saia, Uma mulher afasta-se, cantando. E o árabe dorme numa densa nuvem De fumo... E o canto perde-se à distância... E a noite chega, tépida e estrelada...
Certo, bem doce deve ser a cena Que os seus olhos extáticos ao longe, Turvos, quebrados, lânguidos, contemplam. Há pela alcova, entanto, um murmúrio De vozes. A princípio é um sopro escasso, Um sussurrar baixinho.. . Aumenta logo: É uma prece, um clamor, um coro imenso De ardentes vozes, de convulsos gritos. É a voz da Carne, é a voz da Mocidade, - Canto vivo de força e de beleza, Que sobe desse corpo iluminado...
Dizem os braços: "- Quando o instante doce Há de chegar, em que, à pressão ansiosa Destes laços de músculos sadios, Um corpo amado vibrará de gozo? -"
E os seios dizem: "- Que sedentos lábios, Que ávidos lábios sorverão o vinho Rubro, que temos nestas cheias taças?
Para essa boca que esperamos, pulsa Nestas carnes o sangue, enche estas veias, E entesa e apruma estes rosados bicos... -"
E a boca: "- Eu tenho nesta fina concha Pérolas níveas do mais alto preço, E corais mais brilhantes e mais puros Que a rubra selva que de um tino manto Cobre o fundo dos mares da Abissínia... Ardo e suspiro! Como o dia tarda Em que meus lábios possam ser beijados, Mais que beijados: possam ser mordidos -"
Mas, quando, enfim, das regiões descendo Que, errante, em sonhos percorreu, Satânia Olha-se, e vê-se nua, e, estremecendo, Veste-se, e aos olhos ávidos do dia Vela os encantos, - essa voz declina Lenta, abafada, trêmula...
Um barulho De linhos frescos, de brilhantes sedas Amarrotadas pelas mãos nervosas, Enche a alcova, derrama-se nos ares... E, sob as roupas que a sufocam, inda Por largo tempo, a soluçar, se escuta Num longo choro a entrecortada queixa Das deslumbrantes carnes escondidas...
Quarenta Anos
Sim! como um dia de verão, de acesa Luz, de acesos e cálidos fulgores, Como os sorrisos da estação das flores, Foi passando também tua beleza.
Hoje, das garras da descrença presa, Perdes as ilusões. Vão-se-te as cores Da face. E entram-te n'alma os dissabores, Nublam-te o olhar as sombras da tristeza.
Expira a primavera. O sol fulgura Com o brilho extremo... E aí vêm as noites frias, Aí vem o inverno da velhice escura...
Ah! pudesse eu fazer, novo Ezequias, Que o sol poente dessa formosura Volvesse à aurora dos primeiros dias!
Vestígios
Foram-te os anos consumindo aquela Beleza outrora viva e hoje perdida... Porém teu rosto da passada vida Inda uns vestígios trêmulos revela.
Assim, dos rudes furacões batida, Velha, exposta aos furores da procela, Uma árvore de pé, serena e bela, Inda se ostenta, na floresta erguida
Raivoso o raio a lasca, e a estala, e a fende... Racha-lhe o tronco anoso... Mas, em cima, Verde folhagem triunfal se estende.
Mal segura no chão, vacila... Embora! Inda os ninhos conserva, e se reanima Ao chilrear dos pássaros de outrora...
Um Trecho de Th. Gautier
(Mile de Maupin.)
É porque eu sou assim que o mundo me repele, E é por isso também que eu nada quero dele Minh'alma é uma região ridente e esplendorosa, Na aparência; porém pútrida e pantanosa, Cheia de emanações mefíticas, repleta De imundos vibriões, como a região infecta Da Batávia, de um ar pestífero e nocivo. Olha a vegetação: tulipas de ouro vivo, Fulvos nagassaris de ampla coroa, flores De angsoka, pompeando a opulência das cores, Viçam; viçam rosais de púrpura, sorrindo Sob o límpido azul de um céu sereno e infindo... Mas a flórea cortina entreabre, e vê: - no fundo, Sobre os trôpegos pés movendo o corpo imundo, Vai de rastos um sapo hidrópico e nojento...
Olha esta fonte agora: o claro firmamento Traz no puro cristal, puro como um diamante. Viajor! de longe vens, ardendo em sede? Adiante! Segue! Fora melhor, ao cabo da jornada, De um pântano beber a água que, estagnada Entre os podres juncais, em meio da floresta Dorme... Fora melhor beber dessa água! Nesta Se acaso a incauta mão mergulha um dia a gente, Ao sentir-lhe a frescura ao mesmo tempo sente As picadas mortais das peçonhentas cobras, Que coleiam, torcendo e destorcendo as dobras Da escama, e da atra boca expelindo o veneno...
Segue! porque é maldito e ingrato este terreno: Quando, cheio de fé na colheita futura, Antegozando o bem da próxima fartura, Na terra, que fecunda e boa te parece, Semeares trigo, - em vez da ambicionada messe, Em vez da espiga de ouro a cintilar, - apenas Colherás o meimendro, e as cabeludas penas Que, como serpes, brande a mandrágora bruta, Entre vegetações de asfódelo e cicuta...
Ninguém logrou jamais atravessar em vida A floresta sem fim, negra e desconhecida, Que eu tenho dentro d'alma. É uma floresta enorme, Onde, virgem intacta, a natureza dorme, Como nos matagais da América e de Java: Cresce, crespa e cerrada, a laçaria brava Dos fléxiles cipós, curvos e resistentes, As árvores atando em voltas de serpentes; Lá dentro, na espessura, entre o esplendor selvagem Da flora tropical, nos arcos de folhagem Balançam-se animais fantásticos, suspensos: Morcegos de uma forma extraordinária, e imensos Escaravelhos que o ar pesado e morno agitam. Monstros de horrendo aspecto estas furnas habitam: - Elefantes brutais, brutais rinocerontes, Esfregando ao passar contra os rugosos montes A rugosa couraça, e espedaçando os troncos Das árvores, lá vão; e hipopótamos broncos De túmido focinho e orelhas eriçadas, Batem pausadamente as patas compassadas.
Na clareira, onde o sol penetra ao meio-dia O auriverde dossel das ramagens, e enfia Como uma cunha de ouro um raio luminoso, E onde um calmo retiro achar contaste ansioso, - Transido de pavor encontrarás, piscando Os olhos verdes, e o ar, sôfrego, respirando, Um tigre a dormitar, com a língua rubra o pêlo De veludo lustrando, ou, em calma, um novelo De boas, digerindo o touro devorado...
Tem receio de tudo! O céu puro e azulado, A erva, o fruto maduro, o sol, o ambiente mudo, Tudo aquilo é mortal... Tem receio de tudo!
E é porque eu sou assim que o mundo me repele, E é por isso também que eu nada quero dele!
No Limiar da Morte
Grande lascivo! espera-te a voluptuosidade do nada. (Machado de Assis, Brás Cubas.)
Engelhadas as faces, os cabelos Brancos, ferido, chegas da jornada; Revês da infância os dias; e, ao revê-los, Que fundas mágoas na alma lacerada!
Paras. Palpas a treva em torno. Os gelos Da velhice te cercam. Vês a estrada Negra, cheia de sombras, povoada De atros espectros e de pesadelos...
Tu, que amaste e sofreste, agora os passos Para meu lado moves. Alma em prantos, Deixas os ódios do mundano inferno...
Vem! que enfim gozarás entre meus braços Toda a volúpia, todos os encantos, Toda a delícia do repouso eterno!
Paráfrase de Baudelaire
Assim! Quero sentir sobre a minha cabeça O peso dessa noite embalsamada e espessa... Que suave calor, que volúpia divina As carnes me penetra e os nervos me domina! Ah! deixa-me aspirar indefinidamente Este aroma subtil, este perfume ardente! Deixa-me adormecer envolto em teus cabelos!... Quero senti-los, quero aspirá-los, sorvê-los, E neles mergulhar loucamente o meu rosto, Como quem vem de longe, e, às horas do sol posto, Acha a um canto da estrada uma nascente pura, Onde mitiga ansioso a sede que o tortura... Quero tê-los nas mãos, e agitá-los, cantando, Como a um lenço, pelo ar saudades espalhando. Ah! se pudesses ver tudo o que neles vejo! - Meu desvairado amor! meu insano desejo!...
Teus cabelos contêm uma visão completa: - Largas águas, movendo a superfície inquieta, Cheia de um turbilhão de velas e de mastros, Sob o claro dossel palpitante dos astros; Cava-se o mar, rugindo, ao peso dos navios De todas as nações e todos os feitios, Desenrolando no alto as flâmulas ao vento, E recortando o azul do limpo firmamento, 50b o qual há uma eterna, uma infinita calma.
E prevê meu olhar e pressente minh'alma Longe, - onde, mais profundo e mais azul, se arqueia O céu, onde há mais luz, e onde a atmosfera, cheia De aromas, ao repouso e ao divagar convida, - Um país encantado, uma região querida, Fresca, sorrindo ao sol, entre frutos e flores: - Terra santa da luz, do sonho e dos amores... Terra que nunca vi, terra que não existe, Mas da qual, entretanto, eu, desterrado e triste, Sinto no coração, ralado de ansiedade, Uma saudade eterna, uma fatal saudade! Minha pátria ideal! Em vão estendo os braços Para teu lado! Em vão para teu lado os passos Movo! Em vão! Nunca mais em teu seio adorado Poderei repousar meu corpo fatigado... Nunca mais! nunca mais!
Sobre a minha cabeça, Querida! abre essa noite embalsamada e espessa! Desdobra sobre mim os teus negros cabelos! Quero, sôfrego e louco, aspirá-los, mordê-los, E, bêbedo de amor, o seu peso sentindo, Neles dormir envolto e ser feliz dormindo... Ah! se pudesses ver tudo o que neles vejo!
Meu desvairado amor! Meu insano desejo!
Rios e Pântanos
Muita vez houve céu dentro de um peito! Céu coberto de estrelas resplendentes, Sobre rios alvíssimos, de leito De fina prata e margens florescentes... Um dia veio, em que a descrença o aspeito Mudou de tudo: em túrbidas enchentes, A água um manto de lodo e trevas feito Estendeu pelas veigas recendentes.
E a alma que os anjos de asa solta, os sonhos E as ilusões cruzaram revoando, - Depois, na superfície horrenda e fria,
Só apresenta pântanos medonhos, Onde, os longos sudários arrastando, Passa da peste a legião sombria.
De Volta do Baile
Chega do baile. Descansa. Move a ebúrnea ventarola. Que aroma de sua trança Voluptuoso se evola!
Ao vê-la, a alcova deserta E muda até então, em roda Sentindo-a, treme, desperta, E é festa e delírio toda.
Despe-se. O manto primeiro Retira, as luvas agora, Agora as jóias, chuveiro De pedras da cor da aurora.
E pelas pérolas, pelos Rubins de fogo e diamantes, Faiscando nos seus cabelos Como estrelas coruscantes.
Pelos colares em dobras Enrolados, pelos finos Braceletes, como cobras Mordendo os braços divinos,
Pela grinalda de flores, Pelas sedas que se agitam Murmurando e as várias cores Vivas do arco-íris imitam,
- Por tudo, as mãos inquietas Se movem rapidamente, Como um par de borboletas Sobre um jardim florescente.
Voando em torno, infinitas, Precipitadas, vão, soltas, Revoltas nuvens de fitas, Nuvens de rendas revoltas.
E, de entre as rendas e o arminho, Saltam seus seios rosados, Como de dentro de um ninho Dois pássaros assustados.
E da lâmpada suspensa Treme o clarão; e há por tudo Uma agitação imensa, Um êxtase imenso e mudo.
E, como que por encanto, Num longo rumor de beijos, Há vozes em cada canto E em cada canto desejos...
Mais um gesto... E, vagarosa, Dos ombros solta, a camisa Pelo seu corpo, amorosa E sensualmente, desliza.
E o tronco altivo e direito, O braço, a curva macia Da espádua, o talhe do peito Que de tão branco irradia;
O ventre que, como a neve, Firme e alvíssimo se arqueia E apenas embaixo um leve Buço dourado sombreia;
A coxa firme, que desce Curvamente, a perna, o artelho; Todo o seu corpo aparece Subitamente no espelho...
Mas logo um deslumbramento Se espalha na alcova inteira: Com um rápido movimento Destouca-se a cabeleira.
Que riquíssimo tesouro Naqueles fios dardeja! É como uma nuvem de ouro Que a envolve, e, em zelos, a beija.
Toda, contorno a contorno, Da fronte aos pés, cerca-a; e em ondas Fulvas derrama-se em torno De suas formas redondas:
E, depois de apaixonada Beijá-la linha por linha, Cai-lhe às costas, desdobrada Como um manto de rainha...
Sahara Vitae
Lá vão eles, lá vão! O céu se arqueia Como um teto de bronze infindo e quente, E o sol fuzila e, fuzilando, ardente Criva de flechas de aço o mar de areia...
La vão, com os olhos onde a sede ateia Um fogo estranho, procurando em frente Esse oásis do amor que, claramente, Além, belo e falaz, se delineia.
Mas o simum da morte sopra: a tromba Convulsa envolve-os, prostra-os; e aplacada Sobre si mesma roda e exausta tomba...
E o sol de novo no ígneo céu fuzila... E sobre a geração exterminada A areia dorme plácida e tranqüila.
Beijo Eterno
Quero um beijo sem fim, Que dure a vida inteira e aplaque o meu desejo! Ferve-me o sangue. Acalma-o com teu beijo, Beija-me assim! O ouvido fecha ao rumor Do mundo, e beija-me, querida! Vive só para mim, só para a minha vida, Só para o meu amor!
Fora, repouse em paz Dormida em calmo sono a calma natureza, Ou se debata, das tormentas presa, - Beija inda mais! E, enquanto o brando calor Sinto em meu peito de teu seio, Nossas bocas febris se unam com o mesmo anseio, Com o mesmo ardente amor!
De arrebol a arrebol, Vão-se os dias sem conto! e as noites, como os dias, Sem conto vão-se, cálidas ou frias! Rutile o sol Esplêndido e abrasador! No alto as estrelas coruscantes, Tauxiando os largos céus, brilhem como diamantes! Brilhe aqui dentro o amor!
Suceda a treva à luz! Vele a noite de crepe a curva do horizonte; Em véus de opala a madrugada aponte Nos céus azuis, E Vênus, como uma flor, Brilhe, a sorrir, do ocaso à porta, Brilhe à porta do Oriente! A treva e a luz - que importa? Só nos importa o amor!
Raive o sol no Verão! Venha o Outono! do Inverno os frígidos vapores Toldem o céu! das aves e das flores Venha a estação! Que nos importa o esplendor Da primavera, e o firmamento Limpo, e o sol cintilante, e a neve, e a chuva, e o vento? - Beijemo-nos, amor!
Beijemo-nos! que o mar Nossos beijos ouvindo, em pasmo a voz levante! E cante o sol! a ave desperte e cante! Cante o luar, Cheio de um novo fulgor! Cante a amplidão! cante a floresta! E a natureza toda, em delirante festa, Cante, cante este amor!
Rasgue-se, à noite, o véu Das neblinas, e o vento inquira o monte e o vale: "Quem canta assim?" E uma áurea estrela fale Do alto do céu Ao mar, presa de pavor: "Que agitação estranha é aquela?" E o mar adoce a voz, e à curiosa estrela Responda que é o amor!
E a ave, ao sol da manhã, Também, a asa vibrando, à estrela que palpita Responda, ao vê-la desmaiada e aflita: "Que beijo, irmã! Pudesses ver com que ardor Eles se beijam loucamente!" E inveje-nos a estrela... - e apague o olhar dormente,
Morta, morta de amor!..
Diz tua boca: "Vem!" "Inda mais!", diz a minha, a soluçar... Exclama Todo o meu corpo que o teu corpo chama: "Morde também!" Ai! morde! que doce é a dor Que me entra as carnes, e as tortura! Beija mais! morde mais! que eu morra de ventura, Morto por teu amor!
Quero um beijo sem fim, Que dure a vida inteira e aplaque o meu desejo! Ferve-me o sangue: acalma-o com teu beijo! Beija-me assim! O ouvido fecha ao rumor Do mundo, e beija-me, querida! Vive só para mim, só para a minha vida, Só para o meu amor!
Pomba e Chacal
Õ Natureza! ó mãe piedosa e pura! Ó cruel, implacável assassina! - Mão, que o veneno e o bálsamo propina E aos sorrisos as lágrimas mistura!
Pois o berço, onde a boca pequenina Abre o infante a sorrir, é a miniatura A vaga imagem de uma sepultura, O gérmen vivo de uma atroz ruína?!
Sempre o contraste! Pássaros cantando Sobre túmulos... flores sobre a face De ascosas águas pútridas boiando... Anda a tristeza ao lado da alegria... E esse teu seio, de onde a noite nasce, É o mesmo seio de onde nasce o dia...
Medalha Antiga
(Leconte de Lisle.)
Este, sim! viverá por séculos e séculos, Vencendo o olvido. Soube a sua mão deixar, Ondeando no negror do ônix polido e rútilo, A alva espuma do mar.
Ao sol, bela e radiosa, o olhar surpreso e extático, Vê-se Kypre, à feição de uma jovem princesa, Molemente emergir à flor da face trêmula Da líquida turquesa.
Nua a deusa, nadando, a onda dos seios túmidos Leva diante de si, amorosa e sensual: E a onda mansa do mar borda de argênteos flóculos Seu pescoço imortal.
Livre das fitas, solto em quedas de ouro, espalha-se Gotejante o cabelo: e seu corpo encantado Brilha nas águas, como, entre violetas úmidas, Um lírio imaculado.
E nada, e folga, enquanto as barbatanas ásperas E as fulvas caudas no ar batendo, e em derredor Turvando o Oceano, em grupo os delfins atropelam-se, Para a fitar melhor.
No Cárcere
Por que hei de, em tudo quanto vejo, vê-la? Por que hei de eterna assim reproduzida Vê-la na água do mar, na luz da estrela, Na nuvem de ouro e na palmeira erguida?
Fosse possível ser a imagem dela Depois de tantas mágoas esquecida!... Pois acaso será, para esquecê-la, Mister e força que me deixe a vida?
Negra lembrança do passado! lento Martírio, lento e atroz! Por que não há de Ser dado a toda a mágoa o esquecimento?
Por quê? Quem me encadeia sem piedade No cárcere sem luz deste tormento, Com os pesados grilhões desta saudade?
Olhando a Corrente
Põe-te à margem! Contempla-a, lentamente, Crespa, turva, a rolar. Em vão indagas A que paragens, a que longes plagas Desce, ululando, a lúgubre torrente.
Vem de longe, de longe... Ouve-lhe as pragas! Que infrene grita, que bramir freqüente, Que coro de blasfêmias surdamente Rolam na queda dessas negras vagas!
Choras? Tremes? É tarde... Esses violentos Gritos escuta! Em lágrimas, tristonhos, Fechas os olhos?... Olha ainda o horror
Daquelas águas! Vê! Teus juramentos Lá vão! lá vão levados os meus sonhos, Lá vai levado todo o nosso amor!
Tenho Frio e ardo em Febre!
E tremo a mezza state, ardendo inverno. (PETRARCA.)
Tenho frio e ardo em febre! O amor me acalma e endouda! o amor me eleva e abate! Quem há que os laços, que me prendem, quebre? Que singular, que desigual combate!
Não sei que ervada frecha Mão certeira e falaz me cravou com tal jeito, Que, sem que eu a sentisse, a estreita brecha Abriu, por onde o amor entrou meu peito.
O amor me entrou tão cauto O incauto coração, que eu nem cuidei que estava, Ao recebê-lo, recebendo o arauto Desta loucura desvairada e brava.
Entrou. E, apenas dentro, Deu-me a calma do céu e a agitação do inferno... E hoje... ai! de mim, que dentro em mim concentro Dores e gostos num lutar eterno!
O amor, Senhora, vede: Prendeu-me. Em vão me estorço, e me debato, e grito; Em vão me agito na apertada rede... Mais me embaraço quanto mais me agito!
Falta-me o senso: a esmo, Como um cego, a tatear, busco nem sei que porto: E ando tão diferente de mim mesmo, Que nem sei se estou vivo ou se estou morto.
Sei que entre as nuvens paira Minha fronte, e meus pés andam pisando a terra; Sei que tudo me alegra e me desvaira, E a paz desfruto, suportando a guerra.
E assim peno e assim vivo: Que diverso querer! que diversa vontade! Se estou livre, desejo estar cativo; Se cativo, desejo a liberdade!
E assim vivo, e assim peno; Tenho a boca a sorrir e os olhos cheios de água: E acho o néctar num cálix de veneno, A chorar de prazer e a rir de mágoa.
Infinda mágoa! infindo Prazer! pranto gostoso e sorrisos convulsos! Ah! como dói assim viver, sentindo Asas nos ombros e grilhões nos pulsos!
Nel Mezzo Del Camin...
Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada E triste, e triste e fatigado eu vinha, Tinhas a alma de sonhos povoada, E a alma de sonhos povoada eu tinha...
E paramos de súbito na estrada Da vida: longos anos, presa à minha A tua mão, a vista deslumbrada Tive da luz que teu olhar continha.
Hoje, segues de novo... Na partida Nem o pranto os teus olhos umedece, Nem te comove a dor da despedida.
E eu, solitário, volto a face, e tremo, Vendo o teu vulto que desaparece Na extrema curva do caminho extremo.
Solitudo
Já que te é grato o sofrimento alheio, Vai! Não fique em minh'alma nem um traço, Nem um vestígio teu! Por todo o espaço Se estenda o luto carregado e feio.
Turvem-se os largos céus... No leito escasso Dos rios a água seque... E eu tenha o seio Como um deserto pavoroso, cheio De horrores, sem sinal de humano passo...
Vão-se as aves e as flores juntamente Contigo... Torre o sol a verde alfombra, A areia envolva a solidão inteira...
E só fique em meu peito o Saara ardente Sem um oásis, sem a esquiva sombra De uma isolada e trêmula palmeira!
A Canção de Romeu
Abre a janela... acorda! Que eu, só por te acordar, Vou pulsando a guitarra, corda a corda, Ao luar!
As estrelas surgiram Todas: e o limpo véu, Como lírios alvíssimos, cobriram Do céu.
De todas a mais bela Não veio inda, porém: Falta uma estrela... És tu! Abre a janela, E vem!
A alva cortina ansiosa Do leito entreabre; e, ao chão Saltando, o ouvido presta à harmoniosa Canção.
Solta os cabelos cheios De aroma: e seminus, Surjam formosos, trêmulos, teus seios À luz.
Repousa o espaço mudo; Nem uma aragem, vês? Tudo é silêncio, tudo calma, tudo Mudez.
Abre a janela, acorda! Que eu, só por te acordar, Vou pulsando a guitarra corda a corda, Ao luar!
Que puro céu! que pura Noite! nem um rumor.. Só a guitarra em minhas mãos murmura: Amor!...
Não foi o vento brando Que ouviste soar aqui: É o choro da guitarra, perguntando Por ti.
Não foi a ave que ouviste Chilrando no jardim: É a guitarra que geme e trila triste Assim.
Vem, que esta voz secreta É o canto de Romeu! Acorda! quem te chama, Julieta, Sou eu!
Porém... Ó cotovia, Silêncio! a aurora, em véus De névoa e rosas, não desdobre o dia Nos céus...
Silêncio! que ela acorda... Já fulge o seu olhar... Adormeça a guitarra, corda a corda, Ao luar!
A Tentação de Xenócrates
I
Nada turbava aquela vida austera: Calmo, traçada a túnica severa, Impassível, cruzando a passos lentos As aléias de plátanos, - dizia Das faculdades da alma e da teoria De Platão aos discípulos atentos.
Ora o viam perder-se, concentrado, No labirinto escuso de intricado, Controverso e sofístico problema, Ora os pontos obscuros explicando Do Timeu, e seguro manejando A lâmina bigúmea do dilema.
Muitas vezes, nas mãos pousando a fronte, Com o vago olhar perdido no horizonte, Em pertinaz meditação ficava. Assim, junto às sagradas oliveiras, Era imoto seu corpo horas inteiras, Mas longe dele o espírito pairava.
Longe, acima do humano fervedouro, Sobre as nuvens radiantes, Sobre a planície das estrelas de ouro; Na alta esfera, no páramo profundo Onde não vão, errantes, Bramir as vozes das paixões do mundo:
Aí, na eterna calma, Na eterna luz dos céus silenciosos, Voa, abrindo, sua alma As asas invisíveis, E interrogando os vultos majestosos Dos deuses impassíveis...
E a noite desce, afuma o firmamento... Soa somente, a espaços, O prolongado sussurrar do vento... E expira, às luzes últimas do dia, Todo o rumor de passos Pelos ermos jardins da Academia.
E, longe, luz mais pura Que a extinta luz daquele dia morto Xenócrates procura: - Imortal claridade, Que é proteção e amor, vida e conforto, Porque é a luz da verdade.
II
Ora Laís, a siciliana escrava Que Apeles seduzira, amada e bela Por esse tempo Atenas dominava...
Nem o frio Demóstenes altivo Lhe foge o império: dos encantos dela Curva-se o próprio Diógenes cativo.
Não é maior que a sua a encantadora Graça das formas nítidas e puras Da irresistível Diana caçadora;
Há nos seus olhos um poder divino; Há venenos e pérfidas doçuras Na fita de seu lábio purpurino;
Tem nos seios - dois pássaros que pulam Ao contacto de um beijo, - nos pequenos Pés, que as sandálias sôfregas osculam.
Na coxa, no quadril, no torso airoso, Todo o primor da calipígia Vênus - Estátua viva e esplêndida do Gozo.
Caem-lhe aos pés as pérolas e as flores, As dracmas de ouro, as almas e os presentes, Por uma noite de febris ardores.
Heliastes e Eupátridas sagrados, Artistas e Oradores eloqüentes Leva ao carro de glória acorrentados...
E os generais indômitos, vencidos, Vendo-a, sentem por baixo das couraças Os corações de súbito feridos.
III
Certa noite, ao clamor da festa, em gala, Ao som contínuo das lavradas taças Tinindo cheias na espaçosa sala,
Vozeava o Ceramico, repleto De cortesãs e flores. As mais belas Das heteras de Samos e Mileto
Eram todas na orgia. Estas bebiam, Nuas, à deusa Ceres. Longe, aquelas Em animados grupos discutiam.
Pendentes no ar, em nuvens densas, vários Quentes incensos índicos queimando, Oscilavam de leve os incensários.
Tíbios flautins finíssimos gritavam; E, as curvas harpas de ouro acompanhando, Crótalos claros de metal cantavam...
O espúmeo Chipre as faces dos convivas Acendia. Soavam desvairados Febris acentos de canções lascivas.
Via-se a um lado a pálida Frinéia, Provocando os olhares deslumbrados E os sensuais desejos da assembléia.
Laís além falava: e, de seus lábios Suspensos, a beber-lhe a voz maviosa, Cercavam-na Filósofos e Sábios.
Nisto, entre a turba, ouviu-se a zombeteira Voz de Aristipo: "És bela e poderosa, Laís! mas, por que sejas a primeira,
A mais irresistível das mulheres, Cumpre domar Xenócrates! És bela... Poderás fasciná-lo se o quiseres!
Doma-o, e serás rainha!" Ela sorria. E apostou que, submisso e vil, naquela Mesma noite a seus pés o prostraria. Apostou e partiu...
IV
Na alcova muda e quieta, Apenas se escutava Leve, a areia, a cair no vidro da ampulheta... Xenócrates velava.
Mas que harmonia estranha, Que sussurro lá fora! Agita-se o arvoredo Que o límpido luar serenamente banha: Treme, fala em segredo...
As estrelas, que o céu cobrem de lado a lado, A água ondeante dos lagos Fitam, nela espalhando o seu clarão dourado, Em timidos afagos.
Solta um pássaro o canto. Há um cheiro de carne à beira dos caminhos... E acordam ao luar, como que por encanto, Estremecendo, os ninhos...
Que indistinto rumor! Vibram na voz do vento Crebros, vivos arpejos. E vai da terra e vem do curvo firmamento Um murmurar de beijos.
Com as asas de ouro, em roda Do céu, naquela noite úmida e clara, voa Alguém que a tudo acorda e a natureza toda De desejos povoa:
É a Volúpia que passa e no ar desliza; passa, E os coraçóes inflama... Lá vai! E, sobre a terra, o amor, da curva taça Que traz às mãos, derrama.
E entretanto, deixando A alva barba espalhar-se em rolos sobre o leito,
Xenócrates medita, as magras mãos cruzando Sobre o escamado peito.
Cisma. E tão aturada é a cisma em que flutua Sua alma, e que a regiões ignotas o transporta, - Que não sente Lais, que surge seminua Da muda alcova à porta.
V
É bela assim! Desprende a clâmide! Revolta, Ondeante, a cabeleira, aos níveos ombros solta, Cobre-lhe os seios nus e a curva dos quadris, Num louco turbilhão de áureos fios subtis. Que fogo em seu olhar! Vê-lo é a seus pés prostrada A alma ter suplicante, em lágrimas banhada, Em desejos acesa! Olhar divino! Olhar Que encadeia, e domina, e arrasta ao seu altar Os que morrem por ela, e ao céu pedem mais vida, Para tê-la por ela inda uma vez perdida! Mas Xenócrates cisma...
É em vão que, a prumo, o sol Desse olhar abre a luz num radiante arrebol... Em vão! Vem tarde o sol! Jaz extinta a cratera, Não há vida, nem ar, nem luz, nem primavera: Gelo apenas! E, em gelo envolto, ergue o vulcão Os flancos, entre a névoa e a opaca cerração...
Cisma o sábio. Que importa aquele corpo ardente Que o envolve, e enlaça, e prende, e aperta loucamente? Fosse cadáver frio o mundo ancião! talvez Mais sentisse o calor daquela ebúrnea tez!...
Em vão Laís o abraça, e o nacarado lábio Chega-lhe ao lábio frio... Em vão! Medita o sábio, E nem sente o calor desse corpo que o atrai, Nem o aroma febril que dessa boca sai.
E ela: "Vivo não és! Jurei domar um homem, Mas de beijos não sei que a pedra fria domem!"
Xenócrates, então, do leito levantou O corpo, e o olhar no olhar da cortesã cravou:
"Pode rugir a carne... Embora! Dela acima Paira o espírito ideal que a purifica e anima: Cobrem nuvens o espaço, e, acima do atro véu Das nuvens, brilha a estrela iluminando o céu!"
Disse. E outra vez, deixando A alva barba espalhar-se em rolos sobre o leito, Quedou-se a meditar, as magras mãos cruzando Sobre o escamado peito.
Quando a primeira vez a harmonia secreta De uma lira acordou, gemendo, a terra inteira, - Dentro do coração do primeiro poeta Desabrochou a flor da lágrima primeira.
E o poeta sentiu os olhos rasos de água; Subiu-lhe â boca, ansioso, o primeiro queixume: Tinha nascido a flor da Paixão e da Mágoa, Que possui, como a rosa, espinhos e perfume.
E na terra, por onde o sonhador passava, Ia a roxa corola espalhando as sementes: De modo que, a brilhar, pelo solo ficava Uma vegetação de lágrimas ardentes.
Foi assim que se fez a Via Dolorosa, A avenida ensombrada e triste da Saudade, Onde se arrasta, à noite, a procissão chorosa Dos órfãos do carinho e da felicidade.
Recalcando no peito os gritos e os soluços, Tu conheceste bem essa longa avenida, - Tu que, chorando em vão, te esfalfaste, de bruços, Para, infeliz, galgar o Calvário da Vida.
Teu pé também deixou um sinal neste solo; Também por este solo arrastaste o teu manto... E, ó Musa, a harpa infeliz que sustinhas ao colo, Passou para outras mãos, molhou-se de outro pranto.
Mas tua alma ficou, livre da desventura, Docemente sonhando, as delícias da lua: Entre as flores, agora, uma outra flor fulgura, Guardando na corola uma lembrança tua...
O aroma dessa flor, que o teu martírio encerra, Se imortalizará, pelas almas disperso: - Porque purificou a torpeza da terra Quem deixou sobre a terra uma lágrima e um verso.
Inania Verba
Ah! quem há de exprimir, alma impotente e escrava, O que a boca não diz, o que a mão não escreve? - Ardes, sangras, pregada a' tua cruz, e, em breve, Olhas, desfeito em lodo, o que te deslumbrava...
O Pensamento ferve, e é um turbilhão de lava: A Forma, fria e espessa, é um sepulcro de neve... E a Palavra pesada abafa a Idéia leve, Que, perfume e dano, refulgia e voava.
Quem o molde achará para a expressão de tudo? Ai! quem há de dizer as ânsias infinitas Do sonho? e o céu que foge à mão que se levanta?
E a ira muda? e o asco mudo? e o desespero mudo? E as palavras de fé que nunca foram ditas? E as confissões de amor que morrem na garganta?!
Midsummer's Night's Dream
Quem o encanto dirá destas noites de estão? Corre de estrela a estrela um leve calefrio, Há queixas doces no ar... Eu, recolhido e só, Ergo o sonho da terra, ergo a fronte do pé, Para purificar o coração manchado, Cheio de ódio, de fel, de angústia e de pecado...
Que esquisita saudade! - Uma lembrança estranha De ter vivido já no alto de uma montanha, Tão alta, que tocava o céu... Belo país, Onde, em perpétuo sonho, eu vivia feliz, Livre da ingratidão, livre da indiferença, No seio maternal da Ilusão e da Crença!
Que inexorável mão, sem piedade, cativo, Estrelas, me encerrou no cárcere em que vivo? Louco, em vão, do profundo horror deste atascal, Bracejo, e peno em vão, para fugir do mal! Por que, para uma ignora e longínqua paragem, Astros, não me levais nessa eterna viagem?
Ah! quem pode saber de que outras vidas veio?... Quantas vezes, fitando a Via-Láctea, creio Todo o mistério ver aberto ao meu olhar! Tremo... e cuido sentir dentro de mim pesar Uma alma alheia, uma alma em minha alma escondida, - O cadáver de alguém de quem carrego a vida...
Mater
Tu, grande Mãe!... do amor de teus filhos escrava, Para teus filhos és, no caminho da vida, Como a faixa de luz que o povo hebreu guiava À longe Terra Prometida.
Jorra de teu olhar um rio luminoso. Pois, para batizar essas almas em flor, Deixas cascatear desse olhar carinhoso Todo o Jordão do teu amor.
E espalham tanto brilho as asas infinitas Que expandes sobre os teus, carinhosas e belas, Que o seu grande dano sobe, quando as agitas, E vai perder-se entre as estrelas.
E eles, pelos degraus da luz ampla e sagrada, Fogem da humana dor, fogem do humano pé, E, à procura de Deus, vão subindo essa escada, Que é como a escada de Jacó.
Incontentado
Paixão sem grita, amor sem agonia, Que não oprime nem magoa o peito, Que nada mais do que possui queria, E com tão pouco vive satisfeito.
Amor, que os exageros repudia, Misturado de estima e de respeito, E, tirando das mágoas alegria, Fica farto, ficando sem proveito.
Viva sempre a paixão que me consome, Sem uma queixa, sem um só lamento! Arda sempre este amor que desanimas!
Eu eu tenha sempre, ao murmurar teu nome, O coração, malgrado o sofrimento, Como um rosal desabrochado em rimas.
Sonho
Quantas vezes, em sonho, as asas da saudade Solto para onde estás, e fico de ti perto! Como, depois do sonho, é triste a realidade! Como tudo, sem ti, fica depois deserto!
Sonho... Minha alma voa. O ar gorjeia e soluça. Noite... A amplidão se estende, iluminada e calma: De cada estrela de ouro um anjo se debruça, E abre o olhar espantado, ao ver passar minha alma.
Há por tudo a alegria e o rumor de um noivado. Em torno a cada ninho anda bailando uma asa. E, como sobre um leito um alvo cortinado, Alva, a luz do luar cai sobre a tua casa.
Porém, subitamente, um relâmpago corta Todo o espaço... O rumor de um salmo se levanta E, sorrindo, serena, apareces à porta, Como numa moldura a imagem de uma Santa...
Primavera
Ah! quem nos dera que isto, como outrora, Inda nos comovesse! Ah! quem nos dera Que inda juntos pudéssemos agora Ver o desabrochar da primavera!
Saíamos com os pássaros e a aurora. E, no chão, sobre os troncos cheios de hera, Sentavas-te sorrindo, de hora em hora: "Beijemo-nos! amemo-nos! espera!"
E esse corpo de rosa recendia, E aos meus beijos de fogo palpitava, Alquebrado de amor e de cansaço. .
A alma da terra gorjeava e ria... Nascia a primavera... E eu te levava, Primavera de carne, pelo braço!
Dormindo
De qual de vós desceu para o exílio do mundo A alma desta mulher, astros do céu profundo? Dorme talvez agora... Alvíssimas, serenas, Cruzam-se numa prece as suas mãos pequenas. Para a respiração suavíssima lhe ouvir, A noite se debruça... E, a oscilar e a fulgir, Brande o gládio de luz, que a escuridão recorta, Um arcanjo, de pé, guardando a sua porta. Versos! podeis voar em torno desse leito, E pairar sobre o alvor virginal de seu peito, Aves, tontas de luz, sobre um fresco pomar... Dorme... Rimas febris, podeis febris voar... Como ela, num livor de névoas misteriosas, Dorme o céu, campo azul semeado de rosas; E dois anjos do céu, alvos e pequeninos, Vêm dormir nos dois céus dos seus olhos divinos... Dorme... Estrelas, velai, inundando-a de luz! Caravana, que Deus pelo espaço conduz! Todo o vosso dano nesta pequena alcova Sobre ela, como um nimbo esplêndido, se mova: E, a sorrir e a sonhar, sua leve cabeça Como a da Virgem Mie repouse e resplandeça!
Noturno
Já toda a terra adormece. Sai um soluço da flor. Rompe de tudo um rumor, Leve como o de uma prece.
A tarde cai. Misterioso, Geme entre os ramos e o vento, E há por todo o firmamento Um anseio doloroso.
Áureo turíbulo imenso, O ocaso em púrpuras arde, E para a oração da tarde Desfaz-se em rolos de incenso.
Moribundos e suaves, O vento na asa conduz O último raio da luz E o último canto das aves.
E Deus, na altura infinita, Abre a mão profunda e calma, Em cuja profunda palma Todo o Universo palpita.
Mas um barulho se eleva... E, no páramo celeste, A horda dos astros investe Contra a muralha da treva.
As estrelas, salmodiando O Peã sacro, a voar, Enchem de cânticos o ar... E vão passando... passando...
Agora, maior tristeza, Silêncio agora mais fundo; Dorme, num sono profundo, Sem sonhos, a natureza.
A flor-da-noite abre o cálix... E, soltos, os pirilampos Cobrem a face dos campos, Enchem o seio dos vales:
Trêfegos e alvoroçados, Saltam, fantásticos Djins, De entre as moitas de jasmins, De entre os rosais perfumados.
Um deles pela janela Entra do teu aposento, E pára, plácido e atento Vendo-te, pálida e bela.
Chega ao teu cabelo fino, Mete-se nele: e fulgura, E arde nessa noite escura, Como um astro pequenino.
E fica. Os outros lá fora Deliram. Dormes... Feliz, Não ouves o que ele diz, Não ouves como ele chora...
Diz ele: "O poeta encerra Uma noite, em si, mais triste Que essa que, quando dormiste, Velava a face da terra...
Os outros saem do meio Das moitas cheias de flores: Mas eu saí de entre as dores Que ele tem dentro do seio.
Os outros a toda parte Levam o vivo clarão, E eu vim do seu coração Só para ver-te e beijar-te.
Mandou-me sua alma louca, Que a dor da ausência consome, Saber se em sonho o seu nome Brilha agora em tua boca!
Mandou-me ficar suspenso Sobre o teu peito deserto, Por contemplar de mais perto Todo esse deserto imenso!"
Isso diz o pirilampo... Anda lá fora um rumor De asas rufladas... A flor Desperta, desperta o campo...
Todos os outros, prevendo Que vinha o dia, partiram, Todos os outros fugiram... Só ele fica gemendo.
Fica, ansioso e sozinho, Sobre o teu sono pairando... E apenas, a luz fechando, Volve de novo ao seu ninho,
Quando vê, inda não farto De te ver e de te amar, Que o sol descerras do olhar, E o dia nasce em teu quarto...
Virgens Mortas
Quando uma virgem morre, uma estrela aparece, Nova, no velho engaste azul do firmamento: E a alma da que morreu, de momento em momento, Na luz da que nasceu palpita e resplandece.
Õ vós, que, no silêncio e no recolhimento Do campo, conversais a sós, quando anoitece, Cuidado! - o que dizeis, como um rumor de prece, Vai sussurrar no céu, levado pelo vento...
Namorados, que andais, com a boca transbordando De beijos, perturbando o campo sossegado E o casto coração das flores inflamando,
- Piedade! elas vêem tudo entre as moitas escuras... Piedade! esse impudor ofende o olhar gelado Das que viveram sós, das que morreram puras!
O Cavaleiro Pobre
(Pouchkine.)
Ninguém soube quem era o Cavaleiro Pobre, Que viveu solitário, e morreu sem falar: Era simples e sóbrio, era valente e nobre, E pálido como o luar.
Antes de se entregar às fadigas da guerra, Dizem que um dia viu qualquer cousa do céu: E achou tudo vazão... e pareceu-lhe a terra Um vasto e inútil mausoléu.
Desde então, uma atroz devoradora chama Calcinou-lhe o desejo, e o reduziu a pó. E nunca mais o Pobre olhou uma só dama, - Nem uma só! nem uma só!
Conservou, desde então, a viseira abaixada: E, fiel à Visão, e ao seu amor fiel, Trazia uma inscrição de três letras, gravada A fogo e sangue no broquel.
Foi aos prélios da Fé. Na Palestina, quando, No ardor do seu guerreiro e piedoso mister, Cada filho da Cruz se batia, invocando Um nome caro de mulher,
Ele rouco, brandindo o pique no ar, clamava: "Lumen coeli Regina!" e, ao clamor dessa voz, Nas hostes dos incréus como uma tromba entrava, Irresistível e feroz.
Mil vezes sem morrer viu a morte de perto, E negou-lhe o destino outra vida melhor: Foi viver no deserto... E era imenso o deserto! Mas o seu Sonho era maior!
E um dia, a se estorcer, aos saltos, desgrenhado, Louco, velho, feroz, - naquela solidão Morreu: - mudo, rilhando os dentes, devorado Pelo seu próprio coração.
Ida
Para a porta do céu, pálida e bela, Ida as asas levanta e as nuvens corta. Correm os anjos: e a criança morta Foge dos anjos namorados dela.
Longe do amor materno o céu que importa? O pranto os olhos límpidos lhe estrela... Sob as rosas de neve da capela, Ida soluça, vendo abrir-se a porta.
Quem lhe dera outra vez o escuro canto Da escura terra, onde, a sangrar, sozinho, Um coração de mãe desfaz-se em pranto!
Cerra-se a porta: os anjos todos voam. Como fica distante aquele ninho, Que as mães adoram... mas amaldiçoam!
Noite de Inverno
Sonho que estás à porta... Estás - abro-te os braços! - quase morta, Quase morta de amor e de ansiedade. De onde ouviste o meu grito, que voava, E sobre as asas trêmulas levava As preces da saudade?
Corro à porta... ninguém! Silêncio e treva. Hirta, na sombra, a Solidão eleva Os longos braços rígidos, de gelo... E há pelo corredor ermo e comprido O suave rumor de teu vestido, E o perfume subtil de teu cabelo.
Ah! se agora chegasses! Se eu sentisse bater em minhas faces A luz celeste que teus olhos banha; Se este quarto se enchesse de repente Da melodia, e do dano ardente Que os passos te acompanha:
Beijos, presos no cárcere da boca, Sofreando a custo toda a sede louca, Toda a sede infinita que os devora, - Beijos de fogo, palpitando, cheios De gritos, de gemidos e de anseios, Transbordariam por teu corpo afora...
Rio aceso, banhando Teu corpo, cada beijo, rutilando, Se apressaria, acachoado e grosso: E, cascateando, em pérolas desfeito, Subiria a colina de teu peito, Lambendo-te o pescoço...
Estrela humana que do céu desceste! Desterrada do céu, a luz perdeste Dos fulvos raios, amplos e serenos; E na pele morena e perfumada Guardaste apenas essa cor dourada Que é a mesma cor de Sírius e de Vênus.
Sob a chuva de fogo De meus beijos, amor! terias logo Todo o esplendor do brilho primitivo; E, eternamente presa entre meus braços, Bela, protegerias os meus passos, - Astro formoso e vivo!
Mas... talvez te ofendesse o meu desejo. E, ao teu contacto gélido, meu beijo Fosse cair por terra, desprezado. Embora! que eu ao menos te olharia, E, presa do respeito, ficaria Silencioso e imóvel a teu lado.
Fitando o olhar ansioso No teu, lendo esse livro misterioso, Eu descortinaria a minha sorte... Até que ouvisse, desse olhar ao fundo, Soar, num dobre lúgubre e profundo, A hora da minha morte!
Longe embora de mim teu pensamento, Ouvirias aqui, louco e violento, Bater meu coração em cada canto; E ouvirias, como uma melopéia, Longe embora de mim a tua idéia, A música abafada de meu pranto.
Dormirias, querida... E eu, guardando-te, bela e adormecida, Orgulhoso e feliz com o meu tesouro, Tiraria os meus versos do abandono, E eles embalariam o teu sono, Como uma rede de ouro.
Mas não vens! não virás! Silêncio e treva. Hirta, na sombra, a Solidão eleva Os longos braços rígidos de gelo; E há, pelo corredor ermo e comprido, O suave rumor de teu vestido E o perfume subtil de teu cabelo...
Vanitas
Cego, em febre a cabeça, a mão nervosa e fria, Trabalha. A alma lhe sai da pena, alucinada, E enche-lhe, a palpitar, a estrofe iluminada De gritos de triunfo e gritos de agonia.
Prende a idéia fugaz; doma a rima bravia, Trabalha... E a obra, por fim, resplandece acabada: "Mundo, que as minhas mãos arrancaram do nada! Filha do meu trabalho! ergue-te à luz do dia!
Cheia da minha febre e da minha alma cheia, Arranquei-te da vida ao ádito profundo, Arranquei-te do amor à mina ampla e secreta!
Posso agora morrer, porque vives!" E o Poeta Pensa que vai cair, exausto, ao pé de um mundo, E cai - vaidade humana! - ao pé de um grão de areia...
Tercetos
I
Noite ainda, quando ela me pedia Entre dois beijos que me fosse embora, Eu, com os olhos em lágrimas, dizia:
"Espera ao menos que desponte a aurora! Tua alcova é cheirosa como um ninho.. E olha que escuridão há lá por fora!
Como queres que eu vá, triste e sozinho, Casando a treva e o frio de meu peito Ao frio e à treva que há pelo caminho?!
Ouves? é o vento! é um temporal desfeito! Não me arrojes à chuva e à tempestade! Não me exiles do vale do teu leito!
Morrerei de aflição e de saudade... Espera! até que o dia resplandeça, Aquece-me com a tua mocidade!
Sobre o teu colo deixa-me a cabeça Repousar, como há pouco repousava... Espera um pouco! deixa que amanheça!"
- E ela abria-me os braços. E eu ficava.
II
E, já manhã, quando ela me pedia Que de seu claro corpo me afastasse, Eu, com os olhos em lágrimas, dizia:
"Não pode ser! não vês que o dia nasce? A aurora, em fogo e sangue, as nuvens corta... Que diria de ti quem me encontrasse?
Ah! nem me digas que isso pouco importa!... Que pensariam, vendo-me, apressado, Tão cedo assim, saindo a tua porta,
Vendo-me exausto, pálido, cansado, E todo pelo aroma de teu beijo Escandalosamente perfumado?
O amor, querida, não exclui o pejo. Espera! até que o sol desapareça, Beija-me a boca! mata-me o desejo!
Sobre o teu colo deixa-me a cabeça Repousar, como há pouco repousava! Espera um pouco! deixa que anoiteça!"
- E ela abria-me os braços. E eu ficava.
In Extremis
Nunca morrer assim! Nunca morrer num dia Assim! de um sol assim! Tu, desgrenhada e fria, Fria! postos nos meus os teus olhos molhados, E apertando nos teus os meus dedos gelados...
E um dia assim! de um sol assim! E assim a esfera Toda azul, no esplendor do fim da primavera! Asas, tontas de luz, cortando o firmamento! Ninhos cantando! Em flor a terra toda! O vento Despencando os rosais, sacudindo o arvoredo...
E, aqui dentro, o silêncio... E este espanto! e este medo! Nós dois... e, entre nós dois, implacável e forte, A arredar-me de ti, cada vez mais, a morte...
Eu, com o frio a crescer no coração, - tão cheio De ti, até no horror do derradeiro anseio! Tu, vendo retorcer-se amarguradamente, A boca que beijava a tua boca ardente, A boca que foi tua!
E eu morrendo! e eu morrendo Vendo-te, e vendo o sol, e vendo o céu, e vendo Tão bela palpitar nos teus olhos, querida, A delicia da vida! a delícia da vida!
A Alvorada do Amor
Um horror grande e mudo, um silêncio profundo No dia do Pecado amortalhava o mundo. E Adão, vendo fechar-se a porta do Éden, vendo Que Eva olhava o deserto e hesitava tremendo, Disse:
"Chega-te a mim! entra no meu amor, E à minha carne entrega a tua carne em flor! Preme contra o meu peito o teu seio agitado, E aprende a amar o Amor, renovando o pecado! Abençôo o teu crime, acolho o teu desgosto, Bebo-te, de uma em uma, as lágrimas do rosto!
Vê! tudo nos repele! a toda a criação Sacode o mesmo horror e a mesma indignação... A cólera de Deus torce as árvores, cresta Como um tufão de fogo o seio da floresta, Abre a terra em vulcões, encrespa a água dos rios; As estrelas estão cheias de calefrios; Ruge soturno o mar; turva-se hediondo o céu...
Vamos! que importa Deus? Desata, como um véu, Sobre a tua nudez a cabeleira! Vamos! Arda em chamas o chão; rasguem-te a pele os ramos; Morda-te o corpo o sol; injuriem-te os ninhos; Surjam feras a uivar de todos os caminhos; E, vendo-te a sangrar das urzes através, Se emaranhem no chão as serpes aos teus pés... Que importa? o Amor, botão apenas entreaberto, Ilumina o degredo e perfuma o deserto! Amo-te! sou feliz! porque, do Éden perdido, Levo tudo, levando o teu corpo querido!
Pode, em redor de ti, tudo se aniquilar: - Tudo renascerá cantando ao teu olhar, Tudo, mares e céus, árvores e montanhas, Porque a Vida perpétua arde em tuas entranhas! Rosas te brotarão da boca, se cantares! Rios te correrão dos olhos, se chorares! E se, em torno ao teu corpo encantador e nu, Tudo morrer, que importa? A Natureza és tu, Agora que és mulher, agora que pecaste!
Ah! bendito o momento em que me revelaste O amor com o teu pecado, e a vida com o teu crime! Porque, livre de Deus, redimido e sublime, Homem fico, na terra, à luz dos olhos teus, - Terra, melhor que o céu! homem, maior que Deus!"
Vita Nuova
Se ao mesmo gozo antigo me convidas, Com esses mesmos olhos abrasados, Mata a recordação das horas idas, Das horas que vivemos apartados!
Não me fales das lágrimas perdidas, Não me fales dos beijos dissipados! Há numa vida humana cem mil vidas, Cabem num coração cem mil pecados!
Amo-te! A febre, que supunhas morta, Revive. Esquece o meu passado, louca! Que importa a vida que passou? que importa,
Se inda te amo, depois de amores tantos, E inda tenho, nos olhos e na boca, Novas fontes de beijos e de prantos?!
Manhã de Verão
As nuvens, que, em bulcões, sobre o rio rodavam, Já, com o vir da manhã, do rio se levantam. Como ontem, sob a chuva, estas águas choravam! E hoje, saudando o sol, como estas águas cantam!
A estrela, que ficou por último velando, Noiva que espera o noivo e suspira em segredo, - Desmaia de pudor, apaga, palpitando, A pupila amorosa, e estremece de medo.
Há pelo Paraíba um sussurro de vozes, Tremor de seios nus, corpos brancos luzindo... E, alvas, a cavalgar broncos monstros ferozes, Passam, como num sonho, as náiades fugindo.
A rosa, que acordou sob as ramas cheirosas, Diz-me: "Acorda com um beijo as outras flores quietas! Poeta! Deus criou as mulheres e as rosas Para os beijos do sol e os beijos dos poetas!"
E a ave diz: "Sabes tu? conheço-a bem... Parece Que os Gênios de Oberon bailam pelo ar dispersos, E que o céu se abre todo, e que a terra floresce, - Quando ela principia a recitar teus versos!»
E diz a luz: "Conheço a cor daquela boca! Bem conheço a maciez daquelas mãos pequenas! Não fosse ela aos jardins roubar, trêfega e louca, O rubor da papoula e o alvor das açucenas!"
Diz a palmeira: "Invejo-a! ao vir a luz radiante, Vem o vento agitar-me e desnastrar-me a coma: E eu pelo vento envio ao seu cabelo ondeante Todo o meu esplendor e todo o meu aroma!"
E a floresta, que canta, e o sol, que abre a coroa De ouro fulvo, espancando a matutina bruma, E o lírio, que estremece, e o pássaro, que voa, E a água, cheia de sons e de flocos de espuma,
Tudo, - a cor, o dano, o perfume e o gorjeio, Tudo, elevando a voz, nesta manhã de estio, Diz: "Pudesses dormir, poeta! no seu seio, Curvo como este céu, manso como este rio!"
Dentro da Noite
Ficas a um canto da sala, Olhas-me e finges que lês.. Ainda uma vez te ouço a fala, Olho-te ainda uma vez; Saio... Silêncio por tudo: Nem uma folha se agita; E o firmamento, amplo e mudo, Cheio de estrelas palpita. E eu vou sozinho, pensando Em teu amor, a sonhar, No ouvido e no olhar levando Tua voz e teu olhar.
Mas não sei que luz me banha Todo de um vivo clarão; Não sei que música estranha Me sobe do coração. Como que, em cantos suaves, Pelo caminho que sigo, Eu levo todas as aves, Todos os astros comigo. E é tanta essa luz, é tanta Essa música sem par, Que nem sei se é a luz que canta, Se é o som que vejo brilhar.
Caminho em êxtase, cheio Da luz de todos os sóis, Levando dentro do seio Um ninho de rouxinóis. E tanto brilho derramo, E tanta música espalho, Que acordo os ninhos e inflamo As gotas frias do orvalho. E vou sozinho, pensando Em teu amor, a sonhar, No ouvido e no olhar levando Tua voz e teu olhar.
Caminho. A terra deserta Anima-se. Aqui e ali, Por toda parte desperta Um coração que sorri. Em tudo palpita um beijo, Longo, ansioso, apaixonado, E um delirante desejo De amar e de ser amado. E tudo, - o céu que se arqueia Cheio de estrelas, o mar, Os troncos negros, a areia, - Pergunta, ao ver-me passar:
"O Amor, que a teu lado levas, A que lugar te conduz, Que entras coberto de trevas, E sais coberto de luz? De onde vens? que firmamento Correste durante o dia, Que voltas lançando ao vento Esta inaudita harmonia? Que país de maravilhas, Que Eldorado singular Tu visitaste, que brilhas Mais do que a estrela polar?"
E eu continuo a viagem, Fantasma deslumbrador, Seguido por tua imagem, Seguido por teu amor. Sigo... Dissipo a tristeza De tudo, por todo o espaço, E ardo, e canto, e a Natureza Arde e canta, quando eu passo, - Só porque passo pensando Em teu amor, a sonhar, No ouvido e no olhar levando Tua voz e teu olhar...
Campo-Santo
Os anos matam e dizimam tanto Como as inundações e como as pestes. A alma de cada velho é um Campo-Santo Que a velhice cobriu de cruzes e ciprestes Orvalhados de pranto.
Mas as almas não morrem como as flores, Como os homens, os pássaros e as feras: Rotas, despedaçadas pelas dores, Renascem para o sol de novas primaveras E de novos amores.
Assim, às vezes, na amplidão silente, No sono fundo, na terrível calma Do Campo-Santo, ouve-se um grito ardente: É a Saudade! é a Saudade!... E o cemitério da alma Acorda de repente.
Uivam os ventos funerais medonhos. . Brilha o luar... As lápides se agitam. . E, sob a rama dos chorões tristonhos, Sonhos mortos de amor despertam e palpitam, Cadáveres de sonhos...
Desterro
Já me não amas? Basta! Irei, triste, e exilado Do meu primeiro amor para outro amor, sozinho. Adeus, carne cheirosa! Adeus, primeiro ninho Do meu delírio! Adeus, belo corpo adorado!
Em ti, como num vale, adormeci deitado, No meu sonho de amor, em meão do caminho... Beijo-te inda uma vez, num último carinho, Como quem vai sair da pátria desterrado...
Adeus, corpo gentil, pátria do meu desejo! Berço em que se emplumou o meu primeiro idílio, Terra em que floresceu o meu primeiro beijo!
Adeus! Esse outro amor há de amargar-me tanto Como o pão que se come entre estranhos, no exílio, Amassado com fel e embebido de pranto...
Romeu e Julieta (Ato III, cena V.)
JULIETA: Por que partir tão cedo? inda vem longe o dia... Ouves? é o rouxinol. Não é da cotovia Esta encantada voz. Repara, meu amor: Quem canta é o rouxinol na romãzeira em flor. Toda a noite essa voz, que te feriu o ouvido, Povoa a solidão como um longo gemido. Abracemo-nos! fica! inda vem longe o sol! Não canta a cotovia: é a voz do rouxinol!
ROMEU: É a voz da cotovia anunciando a aurora! Vês? há um leve tremor pelo horizonte afora. Das nuvens do levante abre-se o argênteo véu, E apagam-se de todo as limpadas do céu. Já sobre o cimo azul das serras nebulosas, Hesitante, a manhã coroada de rosas Agita os leves pés, e fica a palpitar Sobre as asas de luz, como quem quer voar. Olha! mais um momento, um rápido momento, E o dia sorrirá por todo o firmamento! Adeus! devo partir! partir para viver... Ou ficar a teus pés para a teus pés morrer!
JULIETA: Não é o dia! O espaço inda se estende, cheio Da noite caridosa. Exala do ígneo seio O sol, piedoso e bom, este vivo dano Sé para te guiar por entre a cerração. Fica um minuto mais! por que partir tão cedo?
ROMEU: Mandas? não partirei! esperarei sem medo Que a morte, com a manhã, venha encontrar-me aqui! Sucumbirei feliz, sucumbindo por ti! Mandas? não partirei! queres? direi contigo Que é mentira o que vejo e mentira o que digo! Sim! tens razão! não é da cotovia a voz Este encantado som que erra em torno de nós! É um reflexo da lua a claridade estranha Que aponta no horizonte acima da montanha! Fico para te ver, fico para te ouvir, Fico para te amar, morro por não partir! Mandas? não partirei! cumpra-se a minha sorte! Julieta assim o quis: bem-vinda seja a morte! Meu amor, meu amor! olha-me assim! assim!
JULIETA: Não! é o dia! é a manhã! Parte! foge de mim! Parte! apressa-te! foge! A cotovia canta E do nascente em fogo o dia se levanta Ah! reconheço enfim estas notas fatais! O dia! ... a luz do sol cresce de mais em mais Sobre a noite nupcial do amor e da loucura!
ROMEU: Cresce... E cresce com ela a nossa desventura! ..............................................................
Vinha de Nabot
Maldito aquele dia, em que abriste em meu seio, Cruel, esta paixão, como, ampla e iluminada, Uma clareira verde, aberta ao sol, no meio Da espessa escuridão de uma selva cerrada!
Ah! três vezes maldito o amor que me avassala, E me obriga a viver dentro de um pesadelo, Louco! por toda a parte ouvindo a tua fala, Vendo por toda a parte a cor do teu cabelo!
De teu colo no vale embalsamado e puro Nunca descansarei, como num paraíso, Sob a tenda aromal desse cabelo escuro, Olhando o teu olhar, sorrindo ao teu sorriso.
Desvairas-me a razão, tiras-me a calma e o sono! Nunca te possuirei, bela e invejada vinha, Ó Vinha de Nabot que tanto ambiciono! Ó alma que procuro e nunca serás minha!
Sacrilégio
Como a alma pura, que teu corpo encerra, Podes, tão bela e sensual, conter? Pura demais para viver na terra, Bela demais para no céu viver.
Amo-te assim! - exulta, meu desejo! É teu grande ideal que te aparece, Oferecendo loucamente o beijo, E castamente murmurando a prece!
Amo-te assim, à fronte conservando A parra e o acanto, sob o alvor do véu, E para a terra os olhos abaixando, E levantando os braços para o céu.
Ainda quando, abraçados, nos enleva O amor em que me abraso e em que te abrasas, Vejo o teu resplandor arder na treva E ouço a palpitação das tuas asas.
Em vão sorrindo, plácidos, brilhantes, Os céus se estendem pelo teu olhar, E, dentro dele, os serafins errantes Passam nos raios claros do luar:
Em vão! - descerras úmidos, e cheios De promessas, os lábios sensuais, E, à flor do peito, empinam-se-te os seios, Ameaçadores como dois punhais.
Como é cheirosa a tua carne ardente! Toco-a, e sinto-a ofegar, ansiosa e louca. Beijo-a, aspiro-a... Mas sinto, de repente, As mãos geladas e gelada a boca:
Parece que uma santa imaculada Desce do altar pela primeira vez, E pela vez primeira profanada Tem por olhos humanos a nudez...
Embora! hei de adorar-te nesta vida, Já que, fraco demais para perdê-la, Não posso um dia, deusa foragida, Ir amar-te no seio de uma estrela.
Beija-me! Ficarei purificado Com o que de puro no teu beijo houver; Ficarei anjo, tendo-te ao meu lado: Tu, ao meu lado, ficarás mulher.
Que me fulmine o horror desta impiedade! Serás minha! Sacrílego e profano, Hei de manchar a tua castidade E dar-te aos lábios um gemido humano!
E à sombria mudez do santuário Preferirás o cálido fulgor De um cantinho da terra, solitário, Iluminado pelo meu amor...
Estâncias
I
Ah! finda o inverno! adeus, noites, breve esquecidas, Junto ao fogo, com as mãos estreitamente unidas! Abracemo-nos muito! adeus! um beijo ainda! Prediz-me o coração que é o nosso amor que finda, Há de em breve sorrir a primavera. Em breve, Branca, aos beijos do sol, há de fundir-se a neve. E. na festa nupcial das almas e das flores, Quando tudo acordar para os novos amores, Meu amor! haverá dois lugares vazios. Tu tão longe de mim! e ambos, mudos e frios, Procurando esquecer os beijos que trocamos, E maldizendo o tempo em que nos adoramos...
II
Mas, às vezes, sozinha, hás de tremer, o vulto De um fantasma entrevendo, em tua alcova oculto. E pelo corpo todo, a ofegar de desejo, Pálida, sentirás a carícia de um beijo. Sentirás o calor da minha boca ansiosa, Na água que te banhar a carne cor-de-rosa, No linho do lençol que te roçar o peito. E hás de crer que sou eu que procuro o teu leito, E hás de crer que sou eu que procuro a tua alma! E abrirás a janela... E, pela noite calma, Ouvirás minha voz no barulho dos ramos, E bendirás o tempo em que nos adoramos...
III
E eu, errante, através das paixões, hei de, um dia, Volver o olhar atrás, para a estrada sombria. Talvez uma saudade, um dia, inesperada, Me punja o coração, como uma punhalada. E agitarei no vácuo as mãos, e um beijo ardente Há de subir-me à boca: e o beijo e as mãos somente Hão de o vácuo encontrar, sem te encontrar, querida! E, como tu, também me acharei só na vida, Só! sem o teu amor e a tua formosura: E chorarei então a minha desventura, Ouvindo a tua voz no barulho dos ramos, E bendizendo o tempo em que nos adoramos...
IV
Renascei, revivei, árvores sussurrantes! Todas as asas vão partir, loucas e errantes, A ruflar, a ruflar... O amor é um passarinho: Deixemo-lo partir: - desertemos o ninho... A primavera vem. Vai-se o inverno. Que importa Que a primavera encontre esta ventura morta? Que importa que o esplendor do universal noivado Venha este noivo achar da noiva separado? Esqueçamos o amor que julgamos eterno... - Dia que iluminaste os meus dias de inverno! Esqueçamos o ardor dos beijos que trocamos, Maldigamos o tempo em que nos adoramos...
Pecador
Este é o altivo pecador sereno, Que os soluços afoga na garganta, E, calmamente, o copo de veneno Aos lábios frios sem tremer levanta.
Tonto, no escuro pantanal terreno Rolou. E, ao cabo de torpeza tanta, Nem assim, miserável e pequeno, Com tão grandes remorsos se quebranta.
Fecha a vergonha e as lágrimas consigo... E, o coração mordendo impenitente, E, o coração rasgando castigado,
Aceita a enormidade do castigo, Com a mesma face com que antigamente Aceitava a delícia do pecado.
Rei Destronado
O teu lugar vazão!... E esteve cheio, Cheio de mocidade e de ternura! Como brilhava a tua formosura! Que luz divina te doirava o seio!
Quando a camisa tépida despias, - Sob o reflexo do cabelo louro, De pé, na alcova, ardias e fulgias Como um ídolo de ouro.
Que fundo o fogo do primeiro beijo, Que eu te arrancava ao lábio recendente! Morria o meu desejo... outro desejo Nascia mais ardente.
Domada a febre, lânguida, em meus braços Dormias, sobre os linhos revolvidos, Inda cheios dos últimos gemidos, Inda quentes dos últimos abraços...
Tudo quanto eu pedira e ambicionara, Tudo meus dedos e meus olhos calmos Gozavam satisfeitos nos seis palmos De tua carne saborosa e clara:
Reino perdido! glória dissipada Tão loucamente! A alcova está deserta, Mas inda com o teu cheiro perfumada, Do teu fulgor coberta...
Só
Este, que um deus cruel arremessou à vida, Marcando-o com o sinal da sua maldição, - Este desabrochou como a erva má, nascida Apenas para aos pés ser calcada no chão.
De motejo em motejo arrasta a alma ferida... Sem constância no amor, dentro do coração Sente, crespa, crescer a selva retorcida Dos pensamentos maus, filhos da solidão.
Longos dias sem sol! noites de eterno luto! Alma cega, perdida à toa no caminho! Roto casco de nau, desprezado no mar!
E, árvore, acabará sem nunca dar um fruto; E, homem, há de morrer como viveu: sozinho! Sem ar! sem luz! sem Deus! sem fé! sem pão! sem lar!
A um Violinista
I
Quando do teu violino, as asas entreabrindo Mansamente no espaço, iam-se as notas quérulas, Anjos de olhos azuis, às duas mãos partindo Os seus cofres de pérolas,
- Minhas crenças de amor, esquecidas em calma No fundo da memória, ouvindo-as recebiam Novo alento, e outra vez do oceano de minh'alma, Arquipélago verde, à tona apareciam.
E eu via rutilar o meu amor perdido, Belo, de nova luz e novo encanto cheio, E um corpo, que supunha há muito consumido, Agitar-se de novo e oferecer-me o seio.
Tudo ressuscitava ao teu influxo, artista! E minh'alma revia, alucinada e louca, Olhos, cujo fulgor me entontecia a vista, Lábios, cujo sabor me entontecia a boca.
Oh milagre! E, feliz, ajoelhava-me, em pranto, Como quem, por acaso, um dia, entrando as portas De um cemitério, vai achar vivas a um canto As suas ilusões que acreditava mortas,
E ficava a pensar... como se não partia Essa fraca madeira ao teu toque violento, Quando com tanta febre a paixão se estorcia Dentro do pequenino e frágil instrumento!
Porque, nesse instrumento, unidos num só peito, Todos os corações da terra palpitavam; E havia dentro dele, em lágrimas desfeito, O amor universal de todos os que amavam,
Rio largo de sons, tapetado de flores, A harmonia do céu jorrava ampla e sonora; E, boiando e cantando, alegrias e dores Iam corrente em fora...
A Primavera rindo esfolhava as capelas, E entornava no chão as ânforas cheirosas: E a canção acordava as rosas e as estrelas, E enchia de desejo as estrelas e as rosas.
E a água verde do mar, e a água fresca dos rios, E as ilhas de esmeralda, e o céu resplandecente, E a cordilheira, e o vale, e os matagais sombrios, Crespos, e a rocha bruta exposta ao sol ardente:
- Tudo, ouvindo essa voz, tudo cantava e amava! O amor, caudal de fogo atropelada e acesa, Entrava pelo sangue e pela seiva entrava, E ia de corpo em corpo enchendo a Natureza!
E ei-lo triste, no chão, inanimado e frio, O teu pobre violino, o teu amor primeiro: E inda nas cordas há, como um leve arrepio, A última vibração do arpejo derradeiro...
Como, ígneas e imortais, num redemoinho insano, Longe, a torvelinhar em céus inacessíveis, Pairam constelações virgens do olhar humano, Nebulosas sem fim de mundos invisíveis:
- Assim no teu violino, artista! adormecido À espera do teu arco, em grupos vaporosos, Dorme, como num céu que não alcança o ouvido, Um mundo interior de sons misteriosos...
Suspendam-me ao ar livre esse doce instrumento! Deixem-no ao sol, em glória, em delirante festa! E ele se embeberá dos perfumes que o vento Traz dos frescos desvios do vale e da floresta.
Os pássaros virão tecer nele os seus ninhos! As rosas se abrirão em suas cordas rotas! E ele derramará sobre os verdes caminhos Da antiga melodia as esquecidas notas!
Hão de as aves cantar, hão de cantar as flores... Os astros sorrirão de amor na imensa esfera... E a terra acordará para os novos amores De nova primavera!
II
Porque, como Terpandro acrescentou à lira, Para a tornar mais doce, uma corda mais pura, Que é a corda onde a paixão desprezada suspira, E, em lágrimas, a arder, suspira a desventura;
Também desse instrumento às quatro cordas de ouro, O Desespero, o Amor, a Cólera, a Piedade, - Tu, nobre alma, chorando acrescentaste o choro Eterno e a eterna dor da corda da Saudade
É saudade o que sinto, e me enche de ais a boca, E me arrebata o sonho, e os nervos me fustiga, Quando te ouço tocar: saudade ansiosa e louca Do primitivo amor e da beleza antiga...
Para trás! para trás! Basta um simples arpejo, Basta uma nota só... Todo o espaço estremece: E, dando aos pés do amado o derradeiro beijo Quase morta de dor, Madalena aparece...
Ao luar de Verona, a amorosa cabeça De Julieta desmaia entre os braços do amante: Não tarda que a alvorada em fogo resplandeça, E na devesa em flor a cotovia cante...
Viúva triste, que à paz do claustro pede alivio, Para a sua viuvez, para o seu luto imenso, Branca, sob o livor do escapulário níveo, Heloísa ergue as mãos, numa nuvem de incenso...
E na suave espiral das melodias puras, Vão fugindo, fugindo os vultos infelizes, Mostrando ao meu amor as suas amarguras, Mostrando ao meu olhar as suas cicatrizes.
Canta! o rio de sons que do seio te brota E, entre os parcéis da dor, corre, cascateando, E vai, de vaga em vaga, e vai, de nota em nota, Ao sabor da corrente os sonhos arrastando;
Que pelo vale espalha a cabeleira inquieta, Refrescando os rosais, e, em leve burburinho, Um gracejo segreda a cada borboleta, E segreda um queixume a cada passarinho;
Que a todo o desconforto e a todo o sofrimento Abre maternalmente o regaço das águas, - É o rio perfumado e azul do Esquecimento, Onde se vão banhar todas as minhas mágoas.
Em Uma Tarde de Outono
Outono. Em frente ao mar. Escancaro as janelas Sobre o jardim calado, e as águas miro, absorto. Outono... Rodopiando, as folhas amarelas Rolam, caem. Viuvez, velhice, desconforto...
Por que, belo navio, ao clarão das estrelas, Visitaste este mar inabitado e morto, Se logo, ao vir do vento, abriste ao vento as velas, Se logo, ao vir da luz, abandonaste o porto?
A água cantou. Rodeava, aos beijos, os teus flancos A espuma, desmanchada em riso e flocos brancos... Mas chegaste com a noite, e fugiste com o sol!
E eu olho o céu deserto, e vejo o oceano triste, E contemplo o lugar por onde te sumiste, Banhado no clarão nascente do arrebol...
Baladas Românticas
I
Branca...
Vi-te pequena: ias rezando Para a primeira comunhão: Toda de branco, murmurando, Na fronte o véu, rosas na mão. Não ias só: grande era o bando... Mas entre todas te escolhi: Minh'alma foi te acompanhando, A vez primeira em que te vi.
Tão branca e moça! o olhar tão brando! Tão inocente o coração! Toda de branco, fulgurando, Mulher em flor! flor em botão! Inda, ao lembrá-lo, a mágoa abrando, Esqueço o mal que vem de ti, E, o meu rancor estrangulando, Bendigo o dia em que te vi!
Rosas na mão, brancas... E, quando Te vi passar, branca visão, Vi, com espanto, palpitando Dentro de mim, esta paixão... O coração pus ao teu mando... E, porque escravo me rendi, Ando gemendo, aos gritos ando, - Porque te amei! porque - te vi!
Depois fugiste... E, inda te amando, Nem te odiei, nem te esqueci: - Toda de branco... Ias rezando... Maldito o dia em que te vi!
II
Azul...
Lembra-te bem! Azul-celeste Era essa alcova em que te amei. O último beijo que me deste Foi nessa alcova que o tomei! É o firmamento que a reveste Toda de um cálido fulgor: - Um firmamento, em que puseste Como uma estrela, o teu amor.
Lembras-te? Um dia me disseste: "Tudo acabou!" E eu exclamei: "Se vais partir, por que vieste?" E às tuas plantas me arrastei... Beijei a fimbria à tua veste, Gritei de espanto, uivei de dor: "Quem há que te ame e te requeste Com febre igual ao meu amor?"
Por todo o mal que me fizeste, Por todo o pranto que chorei, - Como uma casa em que entra a peste, Fecha essa casa em que fui rei! Que nada mais perdure e reste Desse passado embriagador: E cubra a sombra de um cipreste A sepultura deste amor!
Desbote-a o inverno! o estão a creste! Abale-a o vento com fragor! - Desabe a igreja azul-celeste Em que oficiava o meu amor!
III
Verde...
Como era verde este caminho! Que calmo o céu! que verde o mar! E, entre festões, de ninho em ninho, A Primavera a gorjear!... Inda me exalta, como um vinho, Esta fatal recordação! Secou a flor, ficou o espinho... Como me pesa a solidão!
Órfão de amor e de carinho, Órfão da luz do teu olhar, - Verde também, verde-marinho, Que eu nunca mais hei de olvidar! Sob a camisa, alva de linho, Te palpitava o coração... Ai! coração! peno e definho, Longe de ti, na solidão!
Oh! tu, mais branca do que o arminho, Mais pálida do que o luar! - Da sepultura me avizinho, Sempre que volto a este lugar... E digo a cada passarinho: "Não cantes mais! que essa canção Vem me lembrar que estou sozinho, No exílio desta solidão!"
No teu jardim, que desalinho! Que falta faz a tua mão! Como inda é verde este caminho... Mas como o afeia a solidão!
IV
Negra...
Possas chorar, arrependida, Vendo a saudade que aqui vai! Vê que inda, negro, da ferida Aos borbotões o sangue cai... Que a nossa história, assim relida, O nosso amor, lembrado assim, Possam fazer-te, comovida, Inda uma vez pensar em mim!
Minh'alma pobre e desvalida, Órfã de mãe, órfã de pai, Na escuridão vaga perdida, De queda em queda e de ai em ai! E ando a buscar-te. E a minha lida Não tem descanso, não tem fim: Quanto mais longe andas fugida, Mais te vejo eu perto de mim!
Louco! e que lúgubre a descida Para a loucura que me atrai! - Terríveis páginas da vida, Escuras páginas, - cantai! Vim, ermitão, da minha ermida, Morto, do meu sepulcro vim, Erguer a lápida caída Sobre a esperança que houve em mim!
Revivo a mágoa já vivida E as velhas lágrimas... a fim De que chorando, arrependida, Possas lembrar-te inda de mim!
Velha Página
Chove. Que mágoa lá fora! Que mágoa! Embruscam-se os ares Sobre este rio que chora Velhos e eternos pesares.
E sinto o que a terra sente E a tristeza que diviso, Eu, de teus olhos ausente, Ausente de teu sorriso...
As asas loucas abrindo, Meus versos, num longo anseio, Morrerão, sem que, sorrindo, Possa acolhê-los teu seio!
Ah! quem mandou que fizesses Minh'alma da tua escrava, E ouvisses as minhas preces, Chorando como eu chorava?
Por que é que um dia me ouviste, Tão pálida e alvoroçada, E, como quem ama, triste, Como quem ama, calada?
Tu tens um nome celeste... Quem é do céu é sensível! Por que é que me não disseste Toda a verdade terrível?
Por que, fugindo impiedosa, Desertas o nosso ninho? - Era tão bela esta rosa!... Já me tardava este espinho!
Fora melhor, porventura, Ficar no antigo degredo Que conhecer a ventura Para perdê-la tão cedo!
Por que me ouviste, enxugando O pranto das minhas faces? Viste que eu vinha chorando... Antes assim me deixasses!
Antes! Menor me seria O sofrimento, querida! Antes! a mão que alivia A dor, e cura a ferida,
Não deve depois, tranqüila, Vendo sufocada a mágoa, Encher de sangue a pupila Que já vira cheia de água...
Mas junto a mim que te falta? Que glória maior te chama? Não sei de glória mais alta Do que a glória de quem ama!
Talvez te chame a riqueza... Despreza-a, beija-me, e fica! Verás que assim, com certeza, Não há quem seja mais rica!
Como é que quebras os laços Com que prendi o universo, Entre os nossos quatro braços, Na jaula azul do meu verso?
Como hei de eu, de hoje em diante, Viver, depois que partires? Como queres tu que eu cante No dia em que não me ouvires?
Tem pena de mim! tem pena De alma tão fraca! Como há de Minh'alma, que é tão pequena, Poder com tanta saudade?!
Vilfredo
LENDA DO RENO, GRANDMOUGIN
I
O castelo.
Sobre os rochedos, longe, o castelo aparece, Dominando a extensão das florestas sombrias. A tarde cai. O vento abranda. O ar escurece. E Vilfredo caminha entre as neblinas frias.
Vai vê-la... E estuga o passo. Alto e silencioso, Abre o castelo, em fogo, os vitrais das janelas. Nas ameias, manchando o céu caliginoso, Aprumam-se perfis de imóveis sentinelas.
Vilfredo vai ouvir a voz da sua Dama... Mas, no seu coração perturbado, parece Que vive, em vez do amor, essa ligeira chama, Que arde apenas um dia, arde e desaparece...
E o arruinado solar, refletido no Reno, Sobre o qual paira e pesa um sonho sobre-humano, Sobe, entre os astros, só, furando o céu sereno, Com a calma e o esplendor de um velho soberano.
II
As fadas da lagoa.
Vilfredo conheceu o amor nos braços d'Ela... Teve-a nua, a tremer, nos braços, nua e fria! Teve-a nos braços, louca, apaixonada e bela! Mas parte, alucinado, antes que aponte o dia...
É que uma outra paixão o descuidado peito Lhe entrou. Paixão cruel, loucura que o atordoa, Desde o momento em que, formosas, sobre o leito Das águas calmas, viu as fadas da lagoa.
Parte... À margem fatal da lagoa das fadas Chega, e em êxtase fica, a riba em flor mirando. Um ligeiro rumor de vozes abafadas Aumenta... E exsurge da água o apaixonado bando.
Corre Vilfredo, em febre, a apertá-las ao seio, E despreza o passado e esquece o juramento: Beija-as, e, na expansão do carinhoso anseio, Imola toda a vida aos beijos de um momento.
Para os seus corpos ter, toda a alma lhes entrega: E, na alucinação do gozo em que se inflama, Por esse amor, por essa embriaguez renega O Deus dos seus avós, o amor da sua Dama...
III
O remorso.
Delira. Mas, depois do delírio sublime, O remorso, imortal, nasce com o arrebol. E ele mede a extensão do seu monstruoso crime, E esconde a face à luz vingadora do sol.
Busca assustado a paz, busca chorando o olvido... À volúpia infernal o coração vendeu, E o inferno lhe reclama o coração vendido, Cobrando em sangue e pranto o gozo que lhe deu.
Quer rezar, quer voltar ao seu fervor primeiro, Quer nas lajes, de rojo, abominando o mal, Ser de novo Cristão, Fiel e Cavaleiro: Mas não encontra paz na paz da catedral.
Pobre! até no palor das faces maceradas Das monjas, cuida ver as faces que beijou; Ah! seios de marfim! ah! bocas perfumadas! Recordação cruel de um Éden que acabou!
Parte só, sem destino, errando, a passo incerto, Por montes e rechãs, no inverno e no verão, E por anos sem conta habitando o deserto, Sem lágrimas no olhar, sem fé no coração.
Das florestas sem fim sob a abóbada escura Ouve, nos alcantis de em torno, a água rolar; Sobre ele, a longa voz das árvores murmura, E o vendaval retorce os ramos negros no ar.
Mas à fera, ao inseto, ao limo verde, ao vento, Ao sol, ao rio, ao vale, à rocha, à serpe, à flor É em vão que Vilfredo implora o esquecimento Do seu amor cruel, do seu horrendo amor...
IV O castigo.
Volta... Nem luta já contra o crime que o atrai. Velho e trôpego vem, mendigo esfarrapado, E exânime, por fim, num calefrio, cai Sem consciência, ao pé das águas do Pecado.
Calma. A noite caiu. Nem um pássaro voa. Não piam no silêncio as aves agoireiras. Mas palpitam, luzindo, à beira da lagoa, Fogos-fátuos subtis sobre as ervas rasteiras.
E, então, Vilfredo vê, presa de um medo Do denso turbilhão dos fogos repentinos, Com tentações no olhar e convites na voz Surgirem turbilhões de corpos femininos.
E o Inferno pela voz dos fogos-fátuos fala! Vilfredo foge. O horror vai com ele, inclemente! Foge. E corre, e vacila, e tropeça, e resvala, E levanta-se, e foge alucinadamente...
Em vão! pesa sobre ele um destino fatal: E o louco, em todo o horror dos campos tenebrosos, Vê fechar-se e prendê-lo a cadeia infernal Da infernal multidão dos Elfes amorosos...
Tédio
Sobre minh'alma, como sobre um trono, Senhor brutal, pesa o aborrecimento. Como tardas em vir, último outono, Lançar-me as folhas últimas ao vento!
Oh! dormir no silêncio e no abandono, Só, sem um sonho, sem um pensamento, E, no letargo do aniquilamento, Ter, ó pedra, a quietude do teu sono!
Oh! deixar de sonhar o que não vejo! Ter o sangue gelado, e a carne fria! E, de uma luz crepuscular velada,
Deixar a alma dormir sem um desejo, Ampla, fúnebre, lúgubre, vazia Como uma catedral abandonada!...
A Voz do Amor
Nessa pupila rútila e molhada, Refúgio arcano e sacro da Ternura, A ampla noite do gozo e da loucura Se desenrola, quente e embalsamada.
E quando a ansiosa vista desvairada Embebo às vezes nessa noite escura, Dela rompe uma voz, que, entrecortada De soluços e cânticos, murmura...
É a voz do Amor, que, em teu olhar falando, Num concerto de súplicas e gritos Conta a história de todos os amores;
E vêm por ela, rindo e blasfemando, Almas serenas, corações aflitos, Tempestades de lágrimas e flores...
Velhas Árvores
Olha estas velhas árvores, mais belas Do que as árvores novas, mais amigas: Tanto mais belas quanto mais antigas, Vencedoras da idade e das procelas...
O homem, a fera, e o inseto, à sombra delas Vivem, livres de fomes e fadigas; E em seus galhos abrigam-se as cantigas E os amores das aves tagarelas.
Não choremos, amigo, a mocidade! Envelheçamos rindo! envelheçamos Como as árvores fortes envelhecem:
Na glória da alegria e da bondade, Agasalhando os pássaros nos ramos, Dando sombra e consolo aos que padecem!
Maldição
Se por vinte anos, nesta furna escura, Deixei dormir a minha maldição, - Hoje, velha e cansada da amargura, Minh'alma se abrirá como um vulcão.
E, em torrentes de cólera e loucura, Sobre a tua cabeça ferverão Vinte anos de silêncio e de tortura, Vinte anos de agonia e solidão...
Maldita sejas pelo Ideal perdido! Pelo mal que fizeste sem querer! Pelo amor que morreu sem ter nascido!
Pelas horas vividas sem prazer! Pela tristeza do que eu tenho sido! Pelo esplendor do que eu deixei de ser!...
Requiescat
Por que me vens, com o mesmo riso, Por que me vens, com a mesma voz, Lembrar aquele Paraíso, Extinto para nós?
Por que levantas esta lousa? Por que, entre as sombras funerais, Vens acordar o que repousa, O que não vive mais?
Ah! esqueçamos, esqueçamos Que foste minha e que fui teu: Não lembres mais que nos amamos, Que o nosso amor morreu!
O amor é uma árvore ampla, e rica De frutos de ouro, e de embriaguez: Infelizmente, frutifica Apenas uma vez...
Sob essas ramas perfumadas, Teus beijos todos eram meus: E as nossas almas abraçadas Fugiam para Deus.
Mas os teus beijos esfriaram. Lembra-te bem! lembra-te bem! E as folhas pálidas murcharam, E o nosso amor também.
Ah! frutos de ouro, que colhemos, Frutos da cálida estação, Com que delícia vos mordemos, Com que sofreguidão!
Lembras-te? os frutos eram doces... Se ainda os pudéssemos provar! Se eu fosse teu... se minha fosses, E eu te pudesse amar...
Em vão, porém, me beijas, louca! Teu beijo, a palpitar e a arder, Não achará, na minha boca, Outro para o acolher.
Não há mais beijos, nem mais pranto! Lembras-te? quando te perdi Beijei-te tanto, chorei tanto, Com tanto amor por ti,
Que os olhos, vês? já tenho enxutos, E a minha boca se cansou: A árvore já não tem mais frutos! Adeus! tudo acabou!
Outras paixões, outras idades! Sejam os nossos corações Dois relicários de saudades E de recordações.
Ah! esqueçamos, esqueçamos! Durma tranqüilo o nosso amor Na cova rasa onde o enterramos Entre os rosais em flor...
Surdina
No ar sossegado um sino canta, Um sino canta no ar sombrio... Pálida, Vênus se levanta... Que frio!
Um sino canta. O campanário Longe, entre névoas, aparece... Sino, que cantas solitário, Que quer dizer a tua prece?
Que frio! embuçam-se as colinas; Chora, correndo, a água do rio; E o céu se cobre de neblinas. Que frio!
Ninguém... A estrada, ampla e silente, Sem caminhantes, adormece... Sino, que cantas docemente, Que quer dizer a tua prece?
Que medo pânico me aperta O coração triste e vazio! Que esperas mais, alma deserta? Que frio!
Já tanto amei! já sofri tanto! Olhos, por que inda estais molhados? Por que é que choro, a ouvir-te o canto, Sino que dobras a finados?
Trevas, caí! que o dia é morto! Morre também, sonho erradio! A morte é o último conforto... Que frio!
Pobres amores, sem destino, Soltos ao vento, e dizimados! Inda vos choro... E, como um sino, Meu coração dobra a finados.
E com que mágoa o sino canta, No ar sossegado, no ar sombrio! - Pálida, Vênus se levanta. Que frio!
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Primavera. Um sorriso aberto em tudo. Os ramos Numa palpitação de flores e de ninhos. Doirava o sol de outubro a areia dos caminhos (Lembras-te, Rosa?) e ao sol de outubro nos amamos.
Verão. (Lembras-te, Dulce?) À beira-mar, sozinhos. Tentou-nos o pecado: olhaste-me... e pecamos; E o outono desfolhava os roseirais vizinhos, Ó Laura, a vez primeira em que nos abraçamos...
Veio o inverno. Porém, sentada em meus joelhos, Nua, presos aos meus os teus lábios vermelhos, (Lembras-te, Branca?) ardia a tua carne em flor...
Carne, que queres mais? Coração, que mais queres? Passam as estações e passam as mulheres... E eu tenho amado tanto! e não conheço o Amor!